Lopes Marcelo
ESPUMA POÉTICA DA QUARENTENA
Estamos a atravessar dias difíceis, com o horizonte carregado de ansiedade e as coordenadas do tempo alteradas. Enquanto lá fora a natureza se afirma no intenso mosaico colorido da primavera em extraordinária renovação, na vertente do ser de cada pessoa e do estar em família visita-nos a perturbação das rotinas, na perplexidade de tempo a mais. Contudo, daí a que exista como inevitável um vazio, vai a distância do querer e da vontade pois, como dizia o ilustre Padre António Viera: “ só existimos nos dias em que fizemos, nos outros apenas durámos”. Na minha pauta da escrita deste tempo mais lento, surgiu uma janela que designei por espuma poética da quarentena. É das palavras que desejo habitadas e se têm debruçado nesta janela, que recolhi três poemas que hoje partilho com os leitores do nosso Mosaico Cultural.
I
Na moldura deste tempo
espesso e de emboscada
é preciso evitar a cilada.
Atravessar o deserto
de isolamento dos rostos
e quietude afectuosa das mãos,
não tendo por perto
os familiares gestos, sins ou nãos.
É tempo de destemperança,
no lento reerguer
da bandeira da esperança!
II.
Os espinhos existem insidiosos
emboscados na rotina angulosa
do horizonte desconhecido,
nestes dias insólitos.
A inquietação da espera,
vale para o ansiado reencontro
a cinzenta travessia de inverno,
na perfumada antecipação
da ansiada polinização
a renovar-se em cada primavera.
III
Há reencontros à espera,
tantos corações em ânsia
de lá chegar.
Não importa a distância
é preciso acreditar.
De coração a coração
alimenta-se a emoção,
é preciso acreditar.
Um só coração não chega
para que, na pauta da emoção,
a luminosa ala fique a estalar.
Íntima fogueira
a necessitar do teu lugar
da tua vez.
De momento está vazia a tua cadeira,
mas, sente-se perto a tua voz,
bem junto de nós
na esperança de voltarmos a cantar
à nossa maneira.
É preciso acreditar!