José Dias Pires
FELIZ ANO NOVO
“Feliz ano novo.” Foi com estas palavras que o ministro da educação abriu e encerrou a sua comunicação na abertura do ano letivo no concelho de Castelo Branco.
Foi bom ouvi-lo. Ajudou-nos a recordar que houve um tempo em que os nossos avós quase foram meninos e, mesmo sem terem ido à escola, foram felizes no campo. Desenharam as letras dos seus nomes, com uma vara de oliveira, na terra molhada e aprenderam a contar, tendo como material concretizador as ovelhas do rebanho que os seus pais guardavam. Descobriram o agradável amargo das azedas, aprenderam a evitar as urtigas e construíram flautas de cana.
Outros houve que sentiram o peso da régua nas mãos geladas, ouviram o silvar do ponteiro antes de acertar nas orelhas com frieiras e calcaram as agulhas afiadas da escova do chão, martirizando os joelhos, sempre que lhes faltou a memória.
Sobreviveram ao puxão de orelhas, à bofetada de mão cheia, só porque olharam para trás ou deixaram escapar uma gargalhada.
Foram humilhados pela exposição à janela com orelhas de burro, quando falharam um de mil cento e onze problemas do caderno infindável.
Repetiram em eco as linhas de caminho de ferro, as estações e os apeadeiros, os rios e os afluentes, as cordilheiras e as serras.
Cantaram em coro todas as tabuadas, desejando fugir à fila dos burros.
Contudo, e apesar da escola, foram felizes quando desco-briram as rotações no jogo do pião, a precisão jogando ao espeta, a pontaria lançando a bilharda, a estratégia com o berlinde abafador, a velocidade e o equilíbrio correndo com o arco e a aventura nos carrinhos de rolamentos pelas ruas abaixo. Tudo materiais que a escola nunca aproveitou.
Para esta escola, que marcou tantas gerações, foi ficando evidente que as instituições de ensino não poderiam continuar a conviver com relações pedagógicas tão autoritárias como as até então existentes, herdadas de modelos pedagógicas absolutamente ultrapassados, pressupondo que as crianças e os jovens não passavam de pequenos homens com todas as habilidades e competências de um adulto e, dessa forma, responsáveis pelo seu processo de aprendizagem.
Para essas velhas teorias o centro da aprendizagem era o professor omnisciente: protagonizava o papel de rei sol, em que os alunos, passivos e mudos, gravitavam ao seu redor para desempenhar um secundário papel de substantivos comuns sem luz própria.
A disciplina na sala de aula era mantida a qualquer preço e os castigos físicos, bem como as humilhações psicológicas, imitavam as relações autoritárias e antidemocráticas existentes entre o poder e os seus súbditos, ou os pais e os filhos numa reflexão fidedigna do espelho do poder.
Hoje, ainda não estão abandonados os discursos, e as prática,s em que se aceita e se promove a ideia de que, na reprovação, a marca do fracasso é do aluno, na progressão espiralada em ciclos repetitivos a marca do fracasso é da escola e do trabalho do professor, mas muito pouco da organização do sistema educativo, que devia ser permanentemente avaliado (e não foi), continuamente questionado (e não é), revisitado e repensado nos seus pontos frágeis, por todos e com todos os intervenientes e interessados.
Tantas vezes foi repetido que seria este o caminho, mas poucas vezes o vimos corajosamente percorrido, enfrentando o velho e ultrapassado mito de que a reprovação em si é boa, lutando por uma escola que seja capaz de ensinar e não sim-plesmente de excluir.
Por mais que nos revisitem medos e fantasmas, não podemos continuar, alegremente, a conviver física e psicologicamente com o modelo de escola e de ensino que herdamos do passado.
O tempo que está para vir exige-nos uma escola inclusiva, dinâmica e profundamente diferente que, para além de transmitir o conhecimento e gerar o saber socialmente sistematizado, tenha como papel principal possibilitar a socialização e o respeito mútuo, o desenvolvimento de valores éticos e de solidariedade e o exercício efetivo e consciente da cidadania, dentro e fora da escola.
Feliz ano novo, senhor ministro. Esperamos por si.