Maria de Lurdes Gouveia Barata
FALAR DE NATAL
Falar de Natal… pensa-se logo naquelas frases feitas que a época gasta todos os anos, tradicionalmente, palavras puídas como lengalenga monocordicamente entoada, distraidamente dita. Não estou a enveredar por maldizer, quero mesmo afirmar que as palavras são detentoras de muita força, todavia parece que as representativas de paz, solidariedade, amor (por exemplo) só se pronunciam em determinadas alturas, por obrigação, por aparência, por maria vai com as outras, não passando a uma prática ou mesmo a um sentimento de crença. Há uma expressão, deve ser Natal todos os dias, que parece tatuagem natalícia, mas que a realidade da experiência humana nega todos os dias, ferozmente, através de egoísmo, de crueldade, de inveja, de aparente tendência masoquista de fazer mal. Contudo, lá vamos cair no mesmo, desde que não venha dum querer de alma e dum conselho da razão porque sentido.
No entanto, vou chamar poetas para me fazerem companhia. Há um poema que todos os anos repito impreterivelmente na aula de Poetas e Escritores que lecciono na USALBI: «Dia de Natal» de António Gedeão (Máquina de Fogo, 1961). É um poema com actualidade, que critica, com sarcasmo e ironia, uma agitação natalícia donde emergem socialmente características misturadas de futilidade e essencialidade, de mal e de bem. O poema é longo, mas vou transcrever alguns excertos. Começo pelo início desse texto:
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
(…)
Hoje é dia – particulariza o Natal, insinuando que há pelo menos um dia de ser bom. Os exemplos são de carinho para com as crianças, de estar calmo a falar e ouvir, de abraçar as pessoas. Na continuidade, a segunda estância é crítica acérrima – pensar nos outros, nos que mais sofrem e aos que mais sofrem dar coragem para aceitar a sua miséria. É uma crítica sarcástica, porque no dia de ser bom há que incentivar com coragem a desigualdade social: continuar a haver miséria e dar coragem, como se fosse normal haver os que têm e os que nada têm. Verificamos isso em mentalidades actuais. Por isso o primeiro verso da terceira estrofe, acarreta uma ironia acutilante e fraternidade não é isso. Não é justo que se aceite a miséria do próximo, justo é lutar-se para que não exista.
Tudo o que é caracterização de Natal encontra-se neste poema de Gedeão, até no que se relaciona com educação das crianças. Só lendo. Falar em crianças nesta altura é quase obrigatório. Falar em ternura. Deixai vir a mim as criancinhas, disse Jesus. E quem não concorda com a atenção que merecem? Mas, e torno a repetir, para alguns, é só este dia de ser bom, melhor dito, de se mostrar bom. É só pensarmos nas crianças vítimas de maus-tratos nos tais outros dias, como acontece em creches, com amas ou com os próprios pais. A que se deve esta crueldade que parece estar a grassar no século XXI?
Outros poetas corroboram as ideias de injustiça social: António Salvado («Natal com os sem abrigo»), anota uma desigualdade social, com a hipocrisia de quem considera normal a situação:
Por entre os sem abrigo já nasceu
olhando de soslaio quem passar,
(…)
Em gesto caridoso lhe darão
uma sopinha quente e carne assada
(enquanto longe as festas serão grandes
com ricas prendas e jantares lautos).
(…)
Também Jorge de Sena interpela a desigualdade («Natal de 1971»), de que selecciono excertos, com alusões que fazem parte também da nossa realidade de hoje:
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
(…)
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
(…)
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
(…)
A caridade, uma virtude teologal, não chega, se é para ser mérito de quem a exerce, aceitando a injustiça de quem tem fome por não ter emprego ou porque o poder de quem manda, política e economicamente, não resolve problemas de desigualdade.
Mas, porque é Natal, quero ter um momento de entrega ao seu espírito de fraternidade e beleza: «Natal… Na província neva. / Nos lares aconchegados, / Um sentimento conserva / Os sentimentos passados.» (Fernando Pessoa, «Natal», 1ª estância). O sossego da paisagem nevada e o aconchego do lar e da família tornam-se cenário físico e místico duma vivência do Natal da Paz. Sinto assim as mãos enregeladas infantis, que se aquecem progressivamente, olhando e subindo com as labaredas da lareira, pela chaminé acima, à procura de caminho em direcção ao céu da noite enregelada. O cheiro das filhoses a fritar sobe também. E fica o «Natal divino ao rés-do-chão humano» (Miguel Torga, «Natal Divino»). Mas o Menino Jesus vai mesmo descer pela chaminé…