Edição nº 1887 - 19 de março de 2025

Joaquim Bispo
O plano

Era no tempo em que os animais falavam. As espécies tinham-se espalhado pela Terra, ocupando todos os nichos passíveis de sobrevivência. As predadoras caçavam as outras, ocupavam-lhes o território e ficavam por ali a acasalar, a multiplicar-se e a banquetear-se com os corpos estraçalhados das presas que iam apanhando, de cada vez que a fome rosnava. Se os indivíduos das espécies alimentícias se tornassem escassos para as necessidades de uma espécie predadora, esta migrava para territórios mais abundantes em caça.
Esta fábula conta a história dos Breus e dos Listeus, raças muito semelhantes de bípedes caçadores, ferozes e territoriais, aparentados com as hienas. Talvez por serem bípedes, ambas as raças se reclamavam de terem os Homens como ascendentes primordiais e emulavam os seus mitos e as suas organizações.
O encontro destas raças, em tempos distantes, foi dramático e sangrento: os Breus, incapazes de prevalecer na zona que habitavam, ocupada por uma raça mais bem adaptada, sentiram-se constrangidos a migrar para uma zona que tinham ocupado, em tempos, e a tentar reinstalar-se no espaço que ali tinham dominado.
O facto de o território ter entretanto sido ocupado pelos Listeus não constituiu um dilema: atacaram-nos massivamente, matando-os onde quer que os encontravam. Não era para comer; era só para desocupar o território da raça rival. Apesar das aspirações humanas, mantinham a animalidade intacta.
Reagindo às matanças substanciais, os Listeus sobreviventes organizaram-se e deram combate aos invasores. Iniciou-se assim um guerra de limpeza étnica mútua, que foi produzindo extensos morticínios de ambos os lados.
A posse completa e indivisa daquele território justificava todos os sacrifícios. Era uma posse que cada raça tinha como promessa associada à mitologia das origens humanas. À vontade de o possuir, juntava-se, com toda a ênfase, a ordem divina. Mais do que uma necessidade, era uma obrigação.
A guerra quente continuou a estalar a intervalos. Produzia um massacre, que era depois retaliado exponencialmente pela outra raça, até se chegar a novo período de cansaço. A submissão foi surgindo, aqui e ali, como estratégia de sobrevivência para os vencidos e como mais-valia para os vencedores. Então, as proximidades entre uns e outros, embora assimétricas em termos de poder e direitos, criavam tolerâncias, cumplicidades, até amizades, numa espécie de promiscuidade rácica.
Conta-se que, certa vez, muitos anos depois dos enfrentamentos iniciais, uma fêmea foi queixar-se a Fauce, o governante breu local, de que uma sua vizinha, cuja cria tinha morrido, estava a tentar apoderar-se da sua. E arrastara perante o soberano outra fêmea, que carregava às costas uma cria com poucas semanas de vida. O governador, assumindo as funções de juiz por inerência, em atitude grave, mandou que ambas expusessem as suas razões.
Cada uma defendeu a sua maternidade com toda a veemência. Não parecia fácil aquela decisão. Recordando-se, então, de um mito antigo, mandou chamar o carrasco e ordenou-lhe que talhasse a cria em duas partes iguais, “para que nenhuma mãe receba mais do que a outra”.
Logo a fêmea que carregava a cria se lançou ao chão, pedindo que, em vez de tão sábia decisão, a cria fosse entregue à outra.
Estava encontrada a mãe real. Só a mãe verdadeira teria tal atitude de salvamento da cria. Mas, havia que estar atento a muitos aspetos. Os tempos iam lassos, mas não se podia perder de vista o desígnio inicial. Chamou o vizir e perguntou-lhe se tinha alguma informação importante. “É muito provável que a cria seja filha de um macho listeu”, informou ele, em surdina.
Fauce voltou a baixar a cabeça, em aparência de trabalho de justiça. “Filho de listeu, ainda para mais mestiço, poderia vir a arvorar-se em paladino da concórdia das duas raças.” E, com um sinal inequívoco para o verdugo, indicou: «Corta!»
Enquanto o sangue da cria espirrava, sob os uivos da mãe, e o silêncio apaziguado da outra, o governante, na pose solene que a dignidade do cargo exigia, confortava-se com o orgulho do dever cumprido. A humanidade fazia parte do mito, mas podia esperar.

19/03/2025
 

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