Antonieta Garcia
Ri-te para ficares bem na fotografia…
Volto ao tema, porque foram tantas, tantas, tantas as selfies que o verão aprontou que não pode ignorar-se tal militância! Não houve festa nem dança onde não andarilhasse uma modernérrima câmara de registar momentos para mais tarde mostrar, ou postar, ou assim… Um sorriso de boca a orelha diz e dirá da felicidade havida, da que há e haverá. Mas também, neste singular mês de agosto, no Fundão, a ESTE teatralizou, na rua, como se constrói a maioria dos bocadinhos muito curtinhos de vida das selfies. Um grupo de gente, branquinha, cansada, pouco saudável, em uniforme de executivo – cinza, branco, preto, iguaizinhos – trazia uma pasta, um telemóvel última geração. Deslocava-se em fila indiana, amargurada, desconsolada, entediada… Máscaras ambulantes de fazer dó até porque, entre as criaturas, havia jovens, deus meu! O ambiente mudava, porém, com a proposta de uma selfie coletiva: corrigiam a fila, arrumavam-se uns à frente, outros atrás, alguns ao lado, para caberem no ecrã. Irrompia de imediato, um sorriso fecho éclair veloz e rápido.
Regressavam, depois, à mesma fila, autómatos a virar à esquerda ou à direita…Se chegava um telefonema era uma excitação, uma cólera desassossegada em busca de continência, um nervosismo frenético, e todos, todos gesticulavam violentamente, a comunicação a nascer do telemóvel e similares… e a morrer logo que desligavam. Perfilavam-se de novo, aprumadinhos, indiferentes, infelizes, disfarces de gente… As cenas repetiam-se, o sorriso bem treinado, com todos os dentes visíveis, para a selfie, repetiam-se as chamadas, a náusea a dominar...
Comportamento futurista pós-pós-moderno ordena para o dia-a-dia: nada de risos, expressão neutra. Li que os modelos são persuadidos, durante as passagens de moda, a desfilar de semblante ponderado, comedido… Em revistas da especialidade, também é notória a opção. Vá lá perceber-se porquê! Comunicam melhor?
Certo é que, numa qualquer esplanada, pode observar-se sempre a comunicação-que-não-há entre os adoradores das tecnologias… Mas votam uma selfie e desabrocha um esgar muito ensaiado; às vezes, bonito. É, porém, verdadeiro? E como tanto custa, uma, como cem… façam-se as selfies necessárias… As que não agradam apagam-se; as de primeira água postam-se nas redes sociais… Tudo à pressa, na hora, o estresse em vigor, desde meninos armados com smartphones, tablets… (Dão tanto jeito, os malandros!).
Livros? Ler demora, exige tempo e tudo o que pede tempo é uma seca. O interesse tem curto prazo de validade. Ligados a máquinas, tudo é efémero… Até as fotografias.
O que mudou? Lembro os fotógrafos com talento e saber, que tiravam retratos identificadores, obrigatórios, para documentos oficiais; exigiam dom e habilidade.
- Levante a cabeça! Assim! Olhe para o meu ombro esquerdo! Mostrava aos disléxicos: Para aqui! Incline a cabeça um pouco para a esquerda! Nem tanto…
Não dava. Pedia, então, delicadamente, licença, para pegar na cabeça do retratado, inclinava-a, empinava o queixo…
- Não aperte os lábios... Agora sorria. Vá lá!
E antes que atinasse com a postura adequada, o retratista procurava o ângulo, a feição mais favorável, orientava a luz… Alguns deixavam mal vistos os fotógrafos: ao fim de momentos longos, estavam já de cabeça torcida, sorriso amarelo, olhos de carneiro-mal-morto… obedecendo a gestos, jeitos e trejeitos… Muitas vezes, nem parecíamos nós, porque estes retratos davam direito a empapoilamento total: cabeleireiro e fatiota a preceito. Também se ofereciam com legenda adequada: com muita amizade, com muito amor, do todo teu… dedicatórias verdadeiríssimas na hora em que se escreviam.
O mesmo acontecia, quando a fotografia se destinava a uma moldura para enfeitar um móvel qualquer. Habitualmente assinalava uma data digna de registo. Como faziam algumas provas, permitiam ao fotografado escolher a melhor, e bem me lembro de ver os donos da casa, encaixilhados com bom gosto, na sala de jantar a dominar a parede principal. Com fato de ver a Deus, ele dava a direita à dama, ambos trajados a preceito. Competia-lhes colocarem um delicado apontamento de sorriso.
Havia outras fotos espalhadas por mesas, cómodas, mesinhas de cabeceira. Muito semelhantes; um nuzinho(a), o batizado, aos seis meses, até aos seis aninhos, encostado a uma mesa, num triciclo, a primeira comunhão, o baile, aos dezoito, o casamento…
Eram a preto e branco mas fotógrafos engenhosos coloriam-nas artisticamente. Duram muito as fotografias… Tanto que, quando as revemos, anos depois, já perdemos o nome de companheiros próximos com quem partilhámos bons momentos da vida.
Os poucos que tinham Kodak aplicavam a câmara a grupos, familiares, amigos… paisagens, encontros, passeios, casamentos… Tornaram-se velhas fotografias, onde se vê o “tirone”, a “janota”, os de corpo outoniço, os da fila da frente, e os da penumbra atrás.
A garotada estragava o trabalho: mexia-se muito, tapava o sol com as mãos, franzia-se toda, tentava arremedar o sorriso que se pedia: Ri-te para ficares bem na fotografia!
O que acontecerá às selfies atuais? Quem as preserva? Quem as observará daqui por uns anos? Faz-de-conta que estamos felizes, na foto todos a sorrir, a proferir palavras inventadas para o sorriso parecer natural: cheese, regina, banana...
Os olhos da câmara entram em tudo quanto é sítio. Se o fotógrafo é bom, até a alma se vê. Nos tempos que correm há, neste domínio, verdadeiros artistas. Mas não têm nada a ver com o furor narcísico, sélfico...
Cultive-se a esperança, a luz conjeturando que, apesar de tudo, até em momentos futuristas pós-pós-modernos, nas fotos ainda se coloca o sorriso e nem é preciso pedir:
- Ri-te para ficares bem na fotografia!