José Dias Pires
A BIBLIOTECA VASCO SILVA - QUANDO A MEMÓRIA DÓI
Peço antecipadamente desculpa por escrever na primeira pessoa, sei que perceberão, ao ler, que o não poderia fazer de outra maneira.
Tenho um amigo (já falecido) que escreveu um belo livro de poesia intitulado “Quando a memória dói”. Nele espraia as suas emoções sobre as memórias que doem mais: as que são empurradas para o esquecimento compulsivo e as que não existem por ignorância.
Servem-me estas memórias para abordar um dos factos que mais me entristeceram e revoltaram nestes últimos tempos: a desvalorização e o desrespeito, para não dizer desprezo, de algo de valor cultural, material, e emocional inestimáveis: a Biblioteca Vasco Silva.
Comecemos pela memória. Quem foi Vasco Luís Rodrigues da Conceição e Silva (Sertã, 4/8/1923 – Castelo Branco, 15/11/1994):
Filho do escritor Virgílio Godinho, Vasco Silva licenciou-se em História. Depois do apoio que prestou à candidatura de Humberto Delgado foi afastado do ensino oficial e passou a lecionar no ensino secundário particular. Foi candidato pelo Círculo de Castelo Branco nas listas da oposição em 1961. Ligado ao PCP fazia parte de um círculo que lia e distribuía o Jornal Avante em Castelo Branco, ao qual pertenciam, para além de Vasco Silva, o engenheiro Barata, Carlos Correia, Mário Barreto, Tito Zuzarte e Carlos Vale. Preso em Janeiro de 1964, esteve dois anos em Peniche. Foi membro da Comissão Nacional dos Congressos da Oposição Democrática de Aveiro (1969 e 1973).
Depois do 25 de Abril, foi o primeiro governador de Castelo Branco em democracia (de 27 de Agosto de 1974 a 10 de Outubro de 1975) e várias vezes candidato a deputado pela CDU e em diferentes eleições autárquicas.
Após a sua morte, de acordo com a vontade por si manifestada, a sua biblioteca com cerca de 13 000 volumes foi doada ao PCP que a cedeu em 2001, em regime de comodato ao Instituto Politécnico de Castelo Branco, para que ficasse instalada na sua Escola Superior de Educação, de cujas instituições eram, respetivamente, presidente o Professor Valter Vitorino Lemos e diretor o Professor José Dias Pires.
Depois de instalada condignamente num espaço próprio e independente da biblioteca da Escola Superior de Educação, foi assinado em 2002 o documento da cedência em regime de comodato pelo Presidente do Instituto Politécnico de Castelo Branco, o Professor Valter Vitorino Lemos e o representante do PCP Sr. Carlos Vale.
Se o contentamento de todos os que assistiram à cerimónia era enorme, imaginem o meu que de menino a rapaz cresci e me fiz homem junto do meu amigo Luís, filho do Dr. Vasco Silva, ouvindo as suas palavras calmas, por vezes quase frias, que nos ajudavam a saber escolher o que ler entre tanta oferta, para que, passo a passo e sem queimar etapas, pudéssemos aprender a conhecer e reconhecer os valores da cultura e da cidadania.
Nesses anos, usufruí de algumas largas centenas dos seus livros: foram vistos e lidos pelos meus olhos e encheram, de (boas) memórias e ensinamentos, a minha cabeça.
Depois, em 2001 e 2002, passaram todos (leem bem: todos) os milhares de livros e outros muitos elementos bibliográficos pelas minhas mãos, colocados, um a um, nas estantes feitas de propósito para os receber numa sala com cerca de 30 metros quadrados.
Arrumámos (eu, o Professor Ernesto Candeias Martins e a funcionária Paula Neves) livros de literatura portuguesa e internacional (prosa, poesia, teatro) entre os quais várias primeiras edições assinadas, com dedicatória, pelos seus autores; enciclopédias de arte, de história, de língua portuguesa; elucidário; dicionários enciclopédicos; livros de filosofia, sociologia, política, religião, gastronomia, etnografia, etnologia e, imaginem, uma coleção encadernada, que suponho quase única, de revistas de cine clubes de todo o país.
A ESECB comprometera-se a catalogar todo aquele material. Trabalho voluntário realizado pelas técnicas da sua biblioteca: Mafalda e Isabel, supervisionado inicialmente pela bibliotecária Leonor Godinho e concluído pela bibliotecária Iria Pinto Bastos.
Antes de iniciado o processo de catalogação (no segundo semestre de 2002/2003) a Biblioteca ainda esteve aberta ao público, em dias diferentes, durante duas manhãs e duas tardes, através da colaboração voluntária de vários alunos da associação de estudantes de então.
O processo de catalogação tornaria impeditiva essa disponibilidade. Contudo, a partir de 2012, realizada a catalogação, nada haveria que a impedisse a não ser a falta de quem (funcionários ou voluntários) a pudesse manter aberta todos ou vários dias por semana.
Foram procuradas soluções? Pelos vistos não.
Houve ofertas de voluntariado? Houve. Eu fui um deles.
Apesar de tudo isso, nada, absolutamente nada, pode justificar a frieza, a falta de respeito e de memória, a ignorância absoluta da importância cultural de tal espólio, para o descartar sem qualquer justificação plausível, sem qualquer preocupação em encontrar (também com os intervenientes iniciais, por uma questão de respeito e reconhecimento) a melhor solução, o melhor destino.
Soube, para espanto meu, que foram atribulados os contactos realizados pela direção da ESECB para a cessação da cedência em regime de comodato, tendo inicialmente sido contactada a sede do PCP na Rua Soeiro Pereira Gomes em Lisboa. Porquê?
Também seria bom perceber, para não ser injusto, quem, quando e em que termos, promoveu e assinou a cessação da cedência em regime de comodato: a Direção da ESECB ou a Presidência do IPCB que tinha aceite e assinado anteriormente os termos da cedência?
A verdade é que a Biblioteca Vasco Silva saiu da ESECB sem a dignidade e o respeito que lhe eram devidos — em sacos de plástico; e está a ser cuidada com o carinho possível na sede albicastrense do PCP onde foi depositada até encontrar nova localização (sim que a cultura também se trata com carinho).
Sei que a ESECB se compromete a preservar o mobiliário onde a biblioteca esteve instalada, e a cedê-lo ao local onde vier a ficar, o que é uma pequena boa notícia.
Para onde vai? Quem pode saber ainda não sabe.
Quem não sabe já alvitrou Vila de Rei, Sertã ou UBI. Estou informado por fonte absolutamente segura que nenhum desses alvitres corresponde a alguma ação já desenvolvida pelo PCP.
Contudo, entendo que algo tem de ser feito para que a biblioteca permaneça onde o Dr. Vasco Silva desejava: aqui, entre nós; aberta ao usufruto de toda a comunidade albicastrense, para que Castelo Branco se não envergonhe com esta situação em que o respeito e a consideração são empurradas para o esquecimento compulsivo e para a falta de memórias que não existem por ignorância ou desinteresse.
Confio na palavra de quem me disse que tudo faria para que a Biblioteca Vasco Silva permaneça em Castelo Branco — o Presidente da Câmara de Castelo Branco, Luís Correia.
Sei que o fará, porque sei que sabe honrar a memória de quem tanto amou esta cidade.
Estou seguro que encontrará o onde, o como e o quando.
Atrevo-me a configurar o quando: que nesse dia, não importa se dentro de dois ou três meses ou menos (ou mais), a abertura do novo espaço da Biblioteca Vasco Silva será a primeira prenda do Festival Literário de Castelo Branco de 2020.
Que assim seja.