Guilherme D'Oliveira Martins
EDUARDO LOURENÇO, MESTRE SEMPRE
Eduardo Lourenço deixou-nos e sempre se sentiu como beirão do interior. É uma das grandes referências das culturas de língua portuguesa. O ensaísmo que cultivou, na senda de Montaigne e em diálogo com António Sérgio e Sílvio Lima, mas também com Unamuno e Ortega, é uma marca indelével que ficará como um sinal marcante da democracia portuguesa. No seu percurso riquíssimo – desde S. Pedro de Rio Seco a Nice, passando pelo Colégio Militar, pela Universidade de Coimbra, pela criação da revista “Vértice”, pelo exílio cultural de Heidelberg e da Bahia até a Vence - sempre teve uma participação marcante, em fértil ligação com a literatura portuguesa, sobre que refletiu exaustivamente. Foi um heterodoxo, significando essa atitude política e cívica um desalinhamento que significou o culto da liberdade de espírito. A sua escrita é única e inconfundível, revelando com linguagem poética uma extraordinária intuição nas análises dos principais autores do século XX. Não houve autor ou corrente relevante que lhe tenham passado despercebidos. Na geração de “O Tempo e o Modo” pôde fazer análise crítica com inteira independência, descobrindo a melhor qualidade dos autores, independentemente de escolas, e distinguindo-a do “espírito do tempo”. Quando hoje lemos os seus textos luminosos, apercebemo-nos de que soube sempre distinguir o essencial. Nesse ponto, foi um devoto seguidor de Antero de Quental e da sua geração, que nunca considerou como vencida, mas como renovadora e audaciosamente crítica. Pode dizer-se, assim, que na linha de Garrett e Herculano considerou a cultura portuguesa como rica mercê do diálogo entre tradição e inovação, entre identidade e diversidade, mas sempre estimulada pelos desafios da exigência e da modernidade, ciente das suas limitações e nunca condenada de antemão por qualquer fatalismo…
Eduardo Lourenço tem no seu código genético de pensador a marca fundamental de uma síntese fantástica que liga o grito dos jovens de Coimbra e do Casino Lisbonense, de sessenta e setenta do século XIX ao impulso futurista do Orpheu de 1915, menos no imediato do que no largo prazo, de quem procurou ligar a razão e o mito, o idealismo e o sentimento trágico da vida. E, hoje percebemos que esses impulsos que clamam «Indignai-vos!» podem ser úteis. E Eduardo Lourenço empunhou o estandarte europeu, sem demasiadas ilusões: «A cada um sua utopia. Utopia por utopia, como europeu desiludido mas não suicida, prefiro ainda a de uma Europa apostada em existir segundo o voto dos que há meio século a sonhavam, não como uma continuidade óbvia de um passado “europeu” sem identidade, mas como uma aposta numa Europa, empírica e voluntariosamente construída pelas “várias europas” que são cada uma das suas nações». Não é uma pseudo América de segunda ordem que está em causa, mas uma saída que exige compromisso e ação. E. L. pensa Portugal como vontade e como comunidade plural de destinos e valores, pondo em diálogo os mitos e a razão e procurando afastar a maldição do atraso. O enigma português não pode ser respondido ou encontrado através de qualquer simplificação – ora idealista, ora senti-mentalista, ora materialista. E só a heterodoxia permite entender o nosso melting pot, indo ao encontro da miscigenação, ligando a razão e a emoção, percebendo a alternância cíclica do otimismo e do pessimismo. É a «maravilhosa imperfeição» que o pensador cultiva, ligando-a à complexidade e à diversidade. A obra de E.L. procura sempre pôr-se no outro lado, assumindo individualmente a missão, que aprendeu em Montaigne, de partir do eu, do incómodo eu, para o outro. E um heterodoxo lúcido é quem procura mais luz, para poder perceber as diferenças, as parti-cularidades e a universalidade do ser. E. L. é um cultor de paradoxos, ciente de que a cultura se enriquece pela capacidade de ver o mundo do avesso e de olhar para além das aparências. «É a vida mesma que nos biografa – por isso é a nossa vida – e escrevendo-se em nós nos autobiografa sem que a ninguém, salvo essa vertiginosa musa, possamos imputar tão extraordinária façanha». Com um dom de usar as palavras para melhor as adequar ao mundo da vida, o ensaísta não esconde que a essência do género que cultiva, tem a ver com a confissão na primeira pessoa do singular. «Nisso quem está a menos, somos nós, e a vida tão excessivamente a mais que só a conhecemos por nossa nos intervalos em que a temos como se de outro fosse. Só os outros nos tiram retratos e só a coleção aleatória destas vistas ocasionais dos outros sobre nós ocasionalmente arquivadas, se isso valesse a pena, para termos mais tarde e acabada a vida que não nos tem, seria então um “autorretrato”». Em tempos, um grafólogo identificou na escrita do ensaísta «uma excessiva necessidade de outros», e o próprio, paradoxalmente, comparou-se a Judas que precisava desesperadamente de Jesus Cristo.