Maria de Lurdes Gouveia Barata
HORIZONTAL, LIVRO DE ANTÓNIO SALVADO COM A PRESENÇA DE EROS
Na obra recentemente publicada de António Salvado, HORIZONTAL, sobressai o erotismo de que estão imbuídos todos os poemas que a compõem: 14 poemas, uma secção de 11 tercetos, perfazendo assim 25 poemas. Horizontal é um título que consuma um conteúdo ligado a união sexual. O poema inaugural, «Horizontal ternura», apresenta-se como súmula de ligação física, mas eivada dum sentimento de ternura, passando a uma dimensão de sentimento de alma (Horizontal ternura a do teu corpo – 1º verso), guindando-se a uma supremacia de amor sublime na complementaridade de dois corpos – o da mulher e o do homem. Há uma totalidade do corpo, dos corpos, que se fundem na celebração do amor. Avulta a do corpo físico – braços, peitos, bocas, pernas – numa fusão, que os verbos chamejar, enlaçar, apertar, arfar, esmagar reforçam, conduzindo a um amor mais alto, que perfaz a totalidade – um silêncio apaixonado no final, que, diz o eu poético, comove num último estertor. Físico e espírito, através do sentimento.
A união do Céu e da Terra é a primeira união da qual vieram todos os seres – uma hierogamia concretizada por um acto sexual que assegura uma continuidade dos seres, conjugando o homem e a mulher num acto que fecunda.
Outros elementos se presentificam frequentemente nestes poemas, como os olhos. Aliás, há uma poética do olhar em toda a obra de António Salvado. No caso presente, igualmente os olhos assumem papel de relevo, não esquecendo que são elementos que também simbolizam o conhecimento. Pelo olhar, transforma a amada num espelho de si - «De mim o espelho: apenas desejar / E mais que desejar per-manecer / dentro de ti e tu dentro de mim» (p.13) – com a dimensão da reciprocidade de corpo e de alma, de que os olhos também são espelho. A ambiguidade da interpenetração desfaz-se e torna-se mais claro que há uma interpenetração de sentimentos através desse espelho. É ainda nos olhos da amada que o eu poético rejuvenesce, como primeira mensagem da união amorosa: «É nos teus olhos que ela ainda freme / a minha juventude, / nos teus lábios lascivos que perdura / o sabor do apetecido fruto, » (p.10). No poema «Aparição» (p.17), três versos apontam para a força do olhar, que induz a força do eu poético na entrega recíproca: «e o meu vigor encaixa na destreza / dos seus olhos errantes / a musicarem os meus…».
Identicamente, a embriaguez é um motivo de envolvimento entusiástico com transporte das faculdades mentais para um mundo fora do que é mais normal, estando presente, mesmo sem vinho, num arrebatamento da união sexual: «Embriagado, sim, pelos teus olhos / embriagado, sim, p’ la tua boca / embriagado, sim, por toda a curva / a ondular vibrante no teu corpo» (p.15). Há uma epígrafe neste poema que quase lhe serve dum título que não possui: «Eros, outra vez, / embriaga me arrasta (Safo)». Eros, deus do amor entre os gregos, Cupido entre os romanos, abrange também o desejo sensual, pelo que Eros investe na dualidade do acto amoroso. A carga de Eros está na vivência humana e não admira que se presentifique na poesia de António Salvado, que é uma poesia ligada à vida. Embora traços eróticos possam detectar-se ao longo da sua obra poética, é neste livro Horizontal que todos os poemas se imbuem de erotismo. Todavia, a realização concreta da vida sexual implica um fluxo interior de sentimentos para lá do desejo físico, desencadeando uma energia de consumação da vida num acto de amar. Sentimentos expressos são os da alegria, do prazer, do medo também (medo de perder a amada - «Muitos males», p.14), por exemplo.
O corpo feminino torna-se elemento condutor dum processo de libertação ao longo destes poemas. Considerando o ponto de vista freudiano, há um excesso energético que acomete o organismo humano de forma constante, uma pulsão. Daí, a necessidade de libertação. Dou, como exemplo, o poema «Não procurei…» (p. 12): (…) «Em todo o corpo uma tensão informe, / um abalo profundo involuntário, » (…) «E aconteciam a liberdade presa / à tensão a crescer mais forte exacta / a desfazer por fim o pesadelo, / pois este aflou em cálidos afagos.».
«A música é o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos. A melodia é a vida sensível da poesia» disse Ludwig van Beethoven. Estamos perante a poesia, sempre ligada à música, e igualmente perante várias referências à música nestes poemas eróticos. Em «De novo amor» (p. 11), a terceira e última quadra pressupõe uma resplan-decência de sonho unido à realidade conseguida noutra dualidade: a da música e a do encontro dos amantes: «A música interminável / por nós dois percutida / que do sonho ao real / desce em fulgor cumprido.». A união dos amantes torna-se acorde musical. De igual modo, o corpo da amada: «O teu corpo, música serena» («A tua lassidez…» , p. 18). Já três versos referidos - «e o meu vigor encaixa na destreza / dos seus olhos errantes / a musicarem os meus…» («Aparição» - p.17) – colaboram num ritmo musical a dois e em uníssono. Não é por acaso que os dois poemas finais se enleiam na música. O penúltimo: «És inteira melodia / e radiosa harmonia / e ritmo / tão bem marcado / que os nossos corpos só agem / dentro de sons agitados / e sempre sons repetidos.» - a melodia começa pela amada, que é a nota inspiradora, e torna-se criação de dois corpos amantes.
O simbolismo de música (Dicionário de Símbolos, Jean Chevalier e Alain Gheerbrant) postula o seguinte: «O recurso à música, com seus timbres, suas tonalidades, seus ritmos, seus instrumentos diversos, é um dos meios de se associar à plenitude da vida cósmica». Numa conjunção completa de componentes donde emana o erotismo, o último poema «Concerto» vai concatenar vários acordes em melodia única que é a do amor físico: «Os olhos arrojados / endoidecidos lábios / os seios arquejando / o umbigo anelante - / música de sonata /volteia pelo ar / com seus movimentos / com seus instrumentos.». E acrescento: «Se a música é a ciência das modulações (Varon), da medida, concebe-se que ela comande a ordem do cosmo, a ordem humana, a ordem instrumental» (Dicionário de Símbolos, anteriormente citado). É a orquestra de que Eros é maestro, que também rege a vida humana. É a poesia ligada à vida, como é hábito no poeta António Salvado.