Edição nº 1730 - 23 de fevereiro de 2022

Elsa Ligeiro
ELAS ESCREVEM BEM

Não interessa se há ou não uma escrita feminina. Se as mulheres escrevem melhor ou pior que os homens; a verdade é que Elas escrevem bem.
Começaram muito mais tarde; aprisionadas em poemas de amor; sem voz, com o estigma do analfabetismo e da instrução (a um homem durante muitos séculos pediram que sustentasse a casa e a elas que cuidassem dos filhos e fossem domésticas); só a uma minoria era dado tempo de Educação e de Leitura. A grande maioria não sabia escrever uma carta quanto mais um poema ou um livro.
Elas sustentavam emocionalmente a casa e serviam de protagonistas a romances com mães heroínas e irmãs abnegadas; e de amor, com a sublimação da beleza ou a tragédia numa queda moralista.
Há personagens femininas extraordinárias na literatura ocidental como Antígona ou Fedra; e, mais fascinante ainda: Medeia; que, passados dois milénios, ainda nos causa estranheza na sua falta de amor maternal.
Depois a Beatriz (musa de Dante e Petrarca) ou a Catarina (de Camões), e a Bovary que Flaubert conseguiu transformar em mito, passando pelo tribunal de costumes e criminal.
A Anna Karénina é uma heroína de um tempo em que o suicídio era o fim perfeito de um amor à margem do casamento. E a quem Tolstoi conseguiu dar um final épico e trágico; com o mesmo talento que soube iniciar o romance.
Há mais, muitas mais protagonistas femininas de escritores talentosos; até ao aparecimento das intelectuais Mary Shelley e Virgínia Woolf (que assinaram com o apelido dos maridos); das Marguerites Duras e Yourcenar; María Zambrano e Gabriela Mistral; e na américa do norte do século XIX, Emily Dickinson bem podia escrever a sua carta ao mundo que a Europa só lhe responderia no século XX.
O século vinte português está muito bem representado, mas, nos séculos anteriores, um quase deserto de mulheres escritoras com Mariana Alcoforado a encabeçar uma pequena lista de sorores e aristocratas.
A partir do século XX as mulheres emergem no mundo do livro, como editoras, livreiras e autoras: de Florbela Espanca a Sophia; de Agustina Bessa-Luís a Maria Judite de Carvalho; de Maria Velho da Costa a Maria Gabriela Llansol; de Ana Luísa Amaral a Luísa Costa Gomes, de Adília Lopes a Hélia Correia; numa lista de dezenas e dezenas de autoras que marcam a Literatura em Língua Portuguesa (nem me atrevo a desenvolver o mito em que se transformou Clarice Lispector).
Elas escrevem bem, não só sobre as suas fadigas e a sua condição de mulheres e domésticas; mas sobre a vida que não pode ser desperdiçada em jogos florais de poder.
O Amor nunca foi cortês, mas visceral e sofrido entre quatro paredes. E elas sabem disso.
Fico-me em Portugal e na Língua Portuguesa porque uma crónica não dá para muito mais. Que seria da Língua Portuguesa sem o fulgor da escrita de Hilda Hilst ou Natália Correia?
Hoje, a visita a uma Livraria é uma experiência de paridade e sem querer puxar as brasas para qualquer um dos lados; Agustina Bessa-Luís, Teolinda Gersão, Maria Manuel Viana, Luísa Costa Gomes, Dulce Maria Cardoso, Fiama Pais Brandão, Adília Lopes, Margarida Vale de Gato (é impossível enumerar todas as imprescindíveis) e mais umas dezenas de autoras de primeira água; escrevem sobre o mundo e o amor (e como ele é real); em histórias de família que se estendem ao mercado e às ruas, às escolas, e ao que ainda não é percetível à maioria: mergulham no urbano com frenesim; e à contemplação da ruralidade quase perdida e irrecuperável oferecendo-lhe um requiem.
Ninguém escreveu sobre os retornados como Dulce Maria Cardoso; sobre esse país de acolhimento, burocrático e desorganizado; como sempre foi e continua a ser Portugal; onde proliferam os chicos espertíssimos que se contentam com os despojos que o poder sempre fornece. Não são bem portugueses, são serviçais sem nacionalidade.
Ninguém escreveu sobre sexualidade como Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno ou Maria Velho da Costa.
Ninguém no Parlamento Português chamou os bois pelos nomes como o fez Natália Correia ou Sophia de Mello Breyner Andresen.
Elas escrevem bem: depois de conquistaram o direito ao voto, à educação e à escrita; fizeram de Portugal, pelo menos na Literatura, um país decente.

23/02/2022
 

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