Edição nº 1747 - 22 de junho de 2022

Paulo Samuel
IDENTIDADE(S)

Na sociedade do espectáculo que nos foi imposto viver, nem sempre ou raramente é possível atender aos sinais que remetem para um real que, paulatinamente, é relegado para o esquecimento, com mais ênfase (por quem a isso importa) para o domínio do que foi passado e, logo, nada interessa, numa época cujo avatar incarna o fim da História, o domínio da tecnologia e a primazia da efemeridade da rede digital. Todavia, a linear narrativa do presente vê-se agora a braços com situações tão dife-renciadas quanto marcantes, em que, por exemplo, emerge com redobrado vigor a questão identitária, seja ela a que determina a guerra no leste da Europa, seja o britânico Jubileu da Rainha Isabel II. Do geral, transitemos, no entanto, para o particular.
Não foi um político em ascensão, tão-pouco um idoso dirigente associativo em término de mandato, ou um agente cultural impregnado de leituras do passado que veio dizer o que a tantos importa: preservar a memória identitária, manter disponível o compêndio dos saberes tradicionais e zelar pelas marcas que conferem a identidade a um povo, logo, a cada pessoa que integra e forma uma determinada comunidade. Um discreto sacerdote, na homília da celebração e festa de Santa Apolónia, em Alcains, frisou o ponto essencial: é imprescindível, quase questão de vida ou morte, preservar o sentido identitário de uma comunidade, para que cada um tenha consciência de si, da sua relação com o outro e com o meio em que se insere. A perda de tradições (orais, escritas ou de representação plástica, de que o teatro é manifestação apurada), contribui para a desolação do mundo em que nos encontramos. Nisto se incluindo, com maior gravidade, a deriva do homem, que não soube ou não pode precaver as gerações futuras, que são as de hoje. Para quem tem dos estudos culturais uma formação académica mas também vivencial, participada, nada disto é estranho ou se resume a excursão dialéctica. A Globalização, a hegemonia do pensamento único (partilhada pelos totalitarismos extremos, que acabam por se semelhar), o igualitarismo estreme a que se reduz o indivíduo (o bilhete de identidade passou a cartão de cidadão onde prevalece o NIF), esbatem as ousadias daqueles que arriscam pensar e dizer da implícita diferenciação do ser humano, em particular no que ao objecto e modo de pensamento diz respeito. A rasura do quotidiano (para empregar uma expressão cara a Eugénio de Andrade) é condição para se aferir do que verdadeiramente é essencial. Ora, essa essencialidade advém, em fracção maior, da memória e dos saberes que nela foram enraizados pelo agente determinante de tudo, verdadeiro arado de colheitas, que é o tempo. Alcains, sabemo-lo no pouco tempo em que aqui residimos, tem diversas associações. Mas teve no passado, entre outras realidades e colectividades, um Seminário Maior da Diocese, uma Sociedade Filarmónica, um rancho folclórico, enfim, uma história cultural e associativa que só residentes locais e livros (que poucos lêem) de recuperação historiográfica (do Cónego Franco Infante a Florentino Beirão, entre raros outros autores), ainda perpetuam no papel. Na verdade, só se realizou este ano a Santa Apolónia pela vontade de uns poucos, a “malta” de 75, decerto para recuperar, não um passado, mas a pertinência de uma manifestação popular que favorece os laços conviviais e solidários de uma população. População hoje reduzida em número e talvez apetente de uma mais alargada participação no seu registo identitário. Só quem padece de mínima informação antropológica é que desconhece a importância dos ritos agrários e festivos e do que significou sempre, para as gentes do interior, afastadas dos círculos do poder e da “legitimação” do cânone escolar e social, o apego à memória dos saberes ancestrais e dos cultos (sagrados ou cíveis), que desempenhavam função representativa para a consciência de pertença a um sentido ou verdade de si. Pão e palavra alicerçam o que entendemos por cultura. Recuperar, se não as mesmas afirmações identitárias, pelo menos a memória de as ter havido, expressá-las e transmiti-las aos que já cumprem o futuro, é o que confere a uma povoação, freguesia ou vila, a sua marca de distinção e carácter numa planura de mesmidade.

22/06/2022
 

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