José Dias Pires
3 - PARA VIAJAR ATÉ LUGARES ONDE NINGUÉM FOI E PARA QUEM SE ENCANTA COM COISAS ESTRANHAS, SEM TER MEDO DAS SOMBRAS
Ao grande hotel subterrâneo da leitura continuaram a chegar os convidados.
Desta vez foram os ouriços e as doninhas. Levei os dois casais para o Quarto da Horta, que é, de todos, o mais arejado, pois desconfio que o perfume dos dois casais, como é costume, seja muito pouco perfumado. Sei que nenhum dos quatro se importa.
Os Ouriços Ricardo e Ricardina traziam consigo uma cesta com maçã pequenina. Antes que eu fizesse uma pergunta tonta, eles já tinham a informação mais que pronta: «As maçãs vão servir-nos de colchão, colocamo-las nos picos e depois deitamo-nos no chão.»
As Doninhas João e Joana trouxeram um par de frascos enormes de canela indiana. Levei-os para o quarto e disse para os dois: «Bonita ideia, fazer de canela os vossos lençóis. Será que errei?» Olharam para mim e, sorrindo, disseram que sim. Boa, desta vez acertei!
Depois de bem instalados, uns de barriga para o ar e os outros de costas no chão, o Relógio de Dormir começou a função. Na verdade, ainda não tinha chegado a já estás a pairar… e os quatro já estavam a ressonar.
Deixei quatro livros no Quarto da Horta: CAMINHAR PARA LONGE-LONGE DO PERTO-PERTO; SUBIR PARA O ALTO-ALTO; DESCER PARA O FUNDO-FUNDO e COMO CHEGAR AO OUTRO LADO DO OUTRO LADO
Foi com grande animação que chegaram os ratos e as joaninhas. Até agora, parece que são aqueles a quem mais apetece começar a hibernação. Perante tal alegria, pelo sim, pelo não, fui instalá-los, ali, no Quarto da Mercearia. São só dois os roedores, mas os coleópteros são uma enorme multidão — 144.
O Rato Maurício e a Rata Maurícia não trouxeram nada. Vêm apenas para hibernar, que delícia! Mas a minha desconfiança desconfia que eles já adivinhavam que o quarto onde ficavam era o da mercearia. As joaninhas também nada trouxeram, pois se tantas elas eram nada havia para trazer. Como é que elas se chamam? Vou dizer-te sem demora: Joaninha Um e por aí afora… Para não ser uma exagerada monotonia, e haver alguma diversão, há a Joaninha Dúzia, a Joaninha Quarteirão, também a Meia Centena até que se chega à última, de todas a mais vaidosa, e também a mais pequena, chamada Última Joaninha da Grosa.
Depois de bem instalados, os ratos agarradinhos e as joaninhas todas aos montinhos, o Relógio de Dormir começou a trabalhar e, em segundos, já todos estavam a ressonar. Deixei quatro livros no Quarto da Mercearia: O RIO QUE CORRE PARA DENTRO DE SI; A QUE SABEM OS BURACOS DE QUEIJO; O AEROPORTO DAS JOANINHAS e AS CAPAS DAS JOANINHAS.
As cobras e os lagartos chegaram pouco depois. E eu vi-me em maus lençóis, pois, ainda antes de entrar nos túneis que os iam levar aos aposentos destinados a ficarem hibernados, pareciam querer desistir, e já estavam a discutir: «Lagarto, lagarto! Não vos queremos no nosso quarto!» «Quem te disse a ti, ó cobra, que lá não há espaço de sobra?»
Sendo animais de sangue frio, tinham o sangue a ferver! Era grande o desafio, estava-se mesmo a ver. Como tenho algum receio que haja um problema real, vou deixá-los divididos, será que faço mal? Levo-os para o Quarto da Eira que tem uma grande barreira a dividi-lo ao meio.
E não há volta a dar. Já percebi que vou ter de passar várias vezes por aqui, mesmo estando a hibernar.
A Cobra Maria Luís e a Cobra Maria João traziam consigo duas peles de cobra para substituição, caso fossem necessárias quando acabasse a hibernação. O Lagarto Raul e o Lagarto Saul guardavam nos bolsos um corta-unhas azul. Sabiam que as unhas lhes iam crescer até recomeçarem a aquecer.
Assim preparados, e bem separados, lá ficaram os dois casais acomodados. O Relógio de Dormir começou a declamar os seus recados dizendo tudo até até terminar: Dorme bem… até ao ano que vem. Só nessa altura as duas e os dois começaram a ressonar.
Deixei quatro livros no Quarto da Eira: A SOMBRA ESCONDIDA NA ESQUINA DA RUA; A SOMBRA DO GUARDA-SOL; A SOMBRA DO CHAPÉU DE PALHA e A SOMBRA DO SOL AO MEIO-DIA
Os esquilos e os castores tiverem de ficar um pouco à espera para entrar no túnel que os havia de levar ao Quarto do Ribeiro.
O Esquilo Mário e a Esquilo Mariana puxavam, os dois, uma grande casca de uma noz Broddingnoguiana (gigantesca). Olhei para ela. Não tinha nada que saber, era a sua cama, e vinha de Broddingnog, a ilha dos gigantes, muito antiga, por onde o Gulliver já andara antes e se sentira uma formiga.
O Castor Romeu a Castor Julieta pareciam contentes. Apenas traziam duas escovas de dentes de cor violeta. Sorriram para mim, ao verem o meu olhar admirado, e disseram assim:
«Um castor, mesmo hibernado, como é natural, nunca deixa de lado a higiene oral.»
E tinham razão. Levei-os aos quatro. Deitaram-se e dormiram. O Relógio de Dormir nem o ouviram.
Levei quatro livros para o Quarto do Ribeiro: QUANDO A TERRA MOLHADA CHEIRA SECO; O CHEIRO DOCE DE UMA COR AMARGA É O CHEIRO DO LIMÃO; O PARAÍSO DOS CAMALEÕES e O ESPANTOLHO NÃO PODE DORMIR.