Antonieta Garcia
ESTE ANO NÃO COMO PERU, NEM GALO...
- Glu, glu, glu, glu...
Sapateava e cantava o peru repetindo refrãos tão velhos que a maioria tinha perdido o interesse pelas narrativas. Certo é que o galináceo estava divertidíssimo, mesmo sabendo o Natal ali por perto. Queria lá saber da garra da frase, senhora de muitos saberes, que enredava as capoeiras do país...
- Hás de casar com uma velha... - Ouvia-se.
O peru não estranhava. Passavam os anos, ele levantava o monco, abanava-o e, entourado, as penas enfunadas, desafiava a miudagem com um glu, glu remexido e imparável. Conhecedor de linguagem malfazeja, sabia a música de cor, e questionava:
- Glu, glu, glu, glu... Hei de casar com uma velha?
Os amigos faziam coro e o chinfrim era tal que se ouvia até no adro da Igreja. Conseguir calá-los não era tarefa fácil. Na capoeira, cabiam vários sócios; cada qual parlamentava no local que mais lhe agradava. Muitas vezes, cansados, refugiavam-se num canto onde sossegassem!
Valia-lhes a Paz que não arredava pé dos habitantes da quinta... Com ela aprendiam a morar entre coelhos, galinhas, galos, perus e peruas... A coexistência era bendita. Comiam, engordavam, bailavam, cantavam, dormiam... Pertinho da Consoada, a Tristeza entrava pelos orifícios e, como se fosse frio, visitava o galinheiro...
- Estão tão bonitos! Vão fazer inveja a muita gente...
Os perus... vaidosos trauteavam o glu,glu, glu velho, os galos solfejavam o cocorocó afinado, as galinhas cacarejavam despiques e festinhas ...
- Hás de casar com uma velha...
Muitos poderes tinham estas pragas; o medo desatava os pesadelos dos galináceos que percorriam a memória cheios de diabos de faca afiada... Corta aqui, corta além... Olha o forno! A culpada era a Fome; a barriga dava horas, mal o galo despertava, fosse qual fosse o alimento que comparecesse à chamada. No Natal, a larica era uma heroína; os perus inteiriçavam-se, aflitos, atormentados e refilões. Profetizavam as donas:
- Ainda hão de medrar mais até à Consoada!
Entre os ovos que mexem e remexem, às vezes, nascia um mirradito; sempre debaixo das asas da mãe, a fugir ao convívio de outros afetos, sem comer coisa que se visse, magricelas... vivia desesperadamente só. Fazia dó! Acabava vítima de bullying; tremia como varas verdes, quando se aproximavam desconhecidos ou os maiores do galinheiro. Escanzelados, os mais novos da capoeira saíam cedo para a Praça, ou sabe-se lá para onde...
Este ano, porém, estava tudo diferente. Mais tranquilo. Os perus presunçosos, cantores de uma nota só, deslocavam-se pela quinta com altivez e, em passo de dança, encantavam os observadores. Os companheiros comentavam invejosos, quando queriam criticar a exibição:
- Parece mesmo um peru!
- E ainda não beberam a aguardente para a carne ficar macia! Não dão um passo direito! Só lhes falta voar...
Notava o coro comunitário: - Hás de casar com uma velha!
Nada mudava? Uma velha continuava disposta a casar com um peru? - Está triste como um peru na véspera de Natal...
Porquê? Adivinham-se os próximos episódios. Lamentos, facas, forno... no reino dos varões é o que se vê! Armas e mais armas... Quem resolve? A comunidade galinácea decidiu reunir. Examinaram a sorte dos perus. Concluíram que a estranheza começa porque lembram aves dos tempos dos dinossáurios! Têm perna comprida, cabeça grande, pescoço vermelho, e crista inchada; a cauda é longa, as asas brilham. São feios? São bonitos? Eles e elas? Talvez eles sejam os preferidos. No talho, ninguém pede para comprar uma perua para comemorar o Natal...
Mas, ver o mundo pelos olhos dos perus, em véspera de Natal, é uma dor de alma. Em tempo de guerra, recordaram o Lobo do Capuchinho Vermelho, os Três Porquinhos, a Raposa, a Cigarra e a Formiga... e muitos outros desventurados! Discussões, disputas, polémicas não faltaram. Finalmente deliberaram: expulsaremos os portadores de armas. Até os valentes fugirão a sete pés! Forrados de ingénuos, são esses os diabos à solta, de foice em punho.
Todos concordaram. E, com a abalada dos animais ferozes... saíra a sorte grande à capoeira. Por isso, agora, passeiam pela quinta, bailam, arrulham, namoram com juras de amor eterno...
- Este ano, não como peru, nem galo...