Maria de Lurdes Gouveia Barata
ESTE SETEMBRO DE 2024
Sempre senti Setembro como um mês sentimental, é o adjectivo que me ocorre. É tempo de um regresso, de coisas novas, vivia-o quando estudante, e mais tarde como professora, como um mês de reencontro, depois das férias grandes, no riso com amigos e colegas e numa expectativa positiva de renovação com a esperança de que tudo ia voltar a uma rotina prometedora numa época de trabalho normal. No entanto, esse adjectivo sentimental abrangia também a saudade do mar deixado longe (que ainda invadia a alma de resquícios de maresia), de conhecimentos agradáveis conseguidos e dum relaxamento por se terem deixado aquelas preocupações que sempre vão surgindo a nível de profissão ou pessoal. Outro Setembro voltou. Traz as crianças para a escola que gorjeiam de risadas que ainda fazem vibrar o fim de Verão. «No Fim do Verão» é título de um poema de Eugénio de Andrade (O Sal da Língua), que carreia a ideia do regresso das crianças, de que vale transcrição completa:
NO FIM DO VERÃO
No fim do verão as crianças voltam,
correm no molhe, correm no vento.
Tive medo que não voltassem.
Porque as crianças às vezes não
regressam. Não se sabe porquê
mas também elas
morrem.
Elas, frutos solares:
laranjas romãs
dióspiros. Sumarentas
no outono. A que vive dentro de mim
também voltou; continua a correr
nos meus dias. Sinto os seus olhos
rirem; seus olhos
pequenos brilhar como pregos
cromados. Sinto os seus dedos
cantar com a chuva.
A criança voltou. Corre no vento.
Setembro trouxe com frequência canções românticas, poemas de nostalgia pela proximidade do Outono, de sentires que se irmanavam com ritmos da Natureza, com reflexão sobre o tempo inexorável e o cair das folhas, cair dos anos, proximidade de Inverno, tempo outro de árvores despidas em dias cinzentos, metaforicamente transposto para alguma melancolia. É a mudança sempre. Ainda assim, nessa mudança surgirá nova Primavera com o desabrochamento de verdes com o viço de promessa de flores a tecerem tapetes de cor e depois… outro Verão. Muitos poetas cantaram as estações do ano como um suceder de tempos, muitos poetas fizeram nascer a esperança com o exemplo da Primavera.
Mudança. E veio-me à memória o famoso poema camoniano «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades» que se imortalizou em memórias de todos nós. A interpenetração da Natureza e do ser humano, com predominância deste último, incorpora-se ao longo do poema e colho o exemplo dessa expressão no primeiro terceto: «O tempo cobre o chão de verde manto, / Que já coberto foi de neve fria, / E em mim converte em choro o doce canto.» Dois versos (3º e 4º) da primeira quadra são assertivos numa certeza: «Todo o Mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades.» É uma verdade sem discussão e no último terceto vem firmada a própria mudança da mudança: «E afora este mudar-se cada dia, / Outra mudança faz de mor espanto, / Que não se muda já como soía.». É esse o maior espanto: a mudança muda e o que era habitual deixa de o ser.
A convocação deste soneto tem a ver com a grande mudança que se verifica neste Setembro de 2024: já não é apenas a alma humana que se vai transformando ao longo do acto de viver. É também a Natureza! Que Setembro diferente se nos depara! Nós temos o privilégio de saber o que se passa no mundo e como o planeta, que é o nosso Lar, apresenta já alteração nas estações pelas perturbações climáticas que trazem tufões de força violenta, tempestades de chuvas torrenciais, calor extremo, tudo com consequente destruição, com perdas de culturas e de vidas. Tudo com uma frequência desusada. Alguns dos que me possam ler já devem estar com alguma crítica: «lá vem ela outra vez com as alterações climáticas». Provavelmente abuso dessa insistência. Mas não é demasiado insistir, às vezes com algum desalento pelo receio de se ter tornado tarde para regredir. Ou de haver até agora quem duvida, argumentando contra os próprios factos.
Há ainda a morte, muitas mortes, que as guerras trazem e lembro sobretudo as que são centro dos olhares do mundo – a da Ucrânia massacrada pela Rússia, a de Gaza, massacrada por Israel. Como diz o poeta também as crianças morrem, não se sabe porquê. Continuamos a assistir neste Setembro. Há também os mentirosos de guerra, há os mentirosos candidatos a eleições. E a mentira também é guerra. Lembremos, com arrepio, aquele riso narcisista e idiota de Trump, que, em caso de possível eleição, vai trazer mal a todo o mundo.
Setembro sucedeu, mas a mudança não é «como soía». Contudo, libertemos aquela criança que está dentro de nós, como diz Eugénio de Andrade, e corramos no vento com a esperança – para aguentar, para resistir, para dar um sim à vida, como se faz nos casamentos.