Maria de Lurdes Gouveia Barata
O TEMPO E OS TEMPOS QUE CORREM…
O tempo é precioso e diz a sabedoria popular que com tempo tudo se cura, que o tempo é dinheiro e com tempo e perseverança tudo se alcança e outras expressões. Há vários significados da palavra tempo, que pode exprimir uma época (tempo dos Afonsinhos, tempo da Maria Cachucha), uma oportunidade (teve o seu tempo), uma circunstância (andar com o tempo, ir com o tempo), o tempo das estações do ano ou o estado da atmosfera. O tempo como duração, por exemplo da vida humana – idade – levou o filósofo Heidegger a atribuir uma característica ligada ao tempo sobre o homem - um ser para a morte, porque é um ser de tempo. Numa crónica de Miguel Esteves Cardoso, pode ler-se: «Quanto mais precisas para viver, mais tens de trabalhar e menos tempo tens para ti. O maior dos luxos é o tempo. O tempo é o meu maior património.» O tempo que gerimos deve ser construtivo de equilíbrio e na lufa-lufa quotidiana adiamos, por vezes, a atenção aos afectos e a nós próprios com momentos que dão prazer e desenvolvimento. Vem o não há tempo e torna-se no que diz Tolentino de Mendonça: «A nossa maior crueldade é o tempo. (…) Quantas vezes o tempo é a nossa desculpa para desinvestir da vida, (…) [renunciando] à audácia de viver plenamente o breve instante.» (in A Mística do Instante). Efectivamente, há uma velocidade na passagem do tempo, tudo se torna efémero. Acrescento, pelo humor duma realidade apanhada, o «Poeminha sobre o Tempo» de Millôr Fernandes: «O despertador desperta / acorda com sono e medo; / porque a noite é tão curta / e fica tarde tão cedo?» Esta quadra invoca um cavalo do tempo a galopar, do poema «Apocalipse» (Câmara Ardente) de Miguel Torga, de que transcrevo a primeira estância: «É o cavalo do tempo a galopar… / Ninguém pode detê-lo. / Vê-lo / É ver, a sonhar, / Um relâmpago a rasgar / O céu dum pesadelo». Os dois últimos versos registam o relâmpago a rasgar o céu dum pesadelo – o relâmpago pela brevidade, o pesadelo pela angústia que o tempo provoca. Aliás, num outro poema torguiano («Tempo», Cântico do Homem) o primeiro verso é este: «Tempo – definição da angústia.». A consciência do limite do tempo faz deparar com o questionamento do ser humano perante a morte.
No âmbito da palavra tempo como época, e ancorando no título que dei a este artigo, inspirei-me numa conversa que tive com uma senhora, que dizia a certa altura: nos tempos que correm temos motivos de receios. Fala-se de pandemias, tem de se falar de alterações climáticas (eu insisto sempre neste ponto), fala-se de guerras, em Gaza, na Ucrânia e outras, e acrescento um receio que não é especulativo: está o mundo a tornar-se mais perigoso ainda com as decisões tomadas (e outras que se calculam) do Narcisista Louco que governa a América e não se fica por aí (e digo louco no pior sentido: acredito mesmo que há forte perturbação psicológica). Fica adequado um poema de Harold Pinter (in Várias Vozes):
O mundo está prestes a rebentar
Não olhes.
O mundo está prestes a rebentar.
Não olhes.
O mundo está prestes a despejar a sua luz
E a lançar-nos no abismo das suas trevas,
Aquele lugar negro, gordo e sem ar
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos
A ver se conseguimos de novo um posto de partida.
Contudo, há ainda algo de perturbador nestes tempos que correm: é a insensibilidade, o que eu nomeio como ostentação da crueldade, apresentando o exemplo seguinte, entre outros semelhantes: ver um miúdo duma escola, autista, ser brutalmente agredido por um outro, que o pontapeava por todo o corpo, já caído, a vítima tentando proteger a cabeça (sem sucesso), ao mesmo tempo que outros colegas à sua volta filmavam com telemóveis, impávidos, com indiferença perante o sofrimento infligido, decerto contentes por terem matéria para as redes sociais. Quando alguém quis intervir para ajudar (penso que uma mulher jovem), ouviu-se uma voz imperativa de entre os que estavam à volta: não se meta nisto! Como é possível chegar-se a um tempo destes, enquanto o tempo da agressão parecia nunca mais acabar? Será que as imagens de violência que passam nos canais televisivos tornam a violência como normal, passando a olhar-se com indiferença?! A promessa humana de meter a mão na consciência parece não ser possível, porque a desumanidade de alguns afigura-se como o não ter consciência para meter a mão. Diz ainda o saber popular que o tempo é o melhor juiz de todas as coisas, um provérbio que, neste caso, arrasta um julgamento de condenação. Mas que acontece às vítimas que ficam pelo caminho?
Tudo exige prestar contas da vida. A vida traz sempre a teimosia duma esperança, a ver se conseguimos de novo um posto de partida, citando o último verso do poema de Harold Pinter. E, porque falei de tempo, transcrevo um poema do franciscano Frei António das Chagas (1631-1682), apelativo pelos jogos de linguagem, construtivo pelo que transmite:
Conta e Tempo
Deus pede estrita conta de meu tempo.
E eu vou do meu tempo dar-lhe conta.
Mas, como dar, sem tempo, tanta conta
Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo?
Para dar minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado, e não fiz conta,
Não quis, sobrando tempo, fazer conta,
Hoje, quero acertar conta, e não há tempo.
Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta!
Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo,
Quando o tempo chegar, de prestar conta
Chorarão, como eu, o não ter tempo...
Deseja-se que a conta do tempo seja um prestar contas da vida.