Elsa Ligeiro
A MORTE DO AVÔ
No aniversário da Biblioteca Municipal José Cardoso Pires, em Vila de Rei, o escritor Bruno Vieira Amaral revelou a um grupo de jovens estudantes do secundário a sua descoberta da Leitura.
Estrategicamente escolheu “Os Maias” que ele leu ainda sem obrigação escolar; confessando o quanto o comoveu a morte do avô, Afonso da Maia; e como o assustou a possibilidade de ser atingido, também ele, pelo sofrimento da morte do seu avô.
Comoveu-me sobremaneira a sua confissão, por recordar mentalmente essas páginas magníficas de Eça de Queirós, e por ter vivido a vida e a morte do meu avô de forma intensa e próxima.
O meu avô não era um aristocrata que tentava administrar a fortuna que lhe tinham deixado em sorte. O meu avô foi toda a sua vida um guardador de rebanhos, com uma lentidão de gestos e uma paciência que já ninguém tem; e que o acompanharam até à morte.
Lentidão e paciência que lhe permitiu ajudar a dar bom nome ao Queijo de Alcains no seu tempo de trabalho.
A minha convivência com ele era diária, na casa que habitava ao lado da minha, sem muro a dividir o quintal que foi durante duas décadas o lugar da minha ligação à terra no que ela tem de mais simbólico.
Onde os animais de criação e os gatos vadios nos faziam companhia do verão à primavera.
As árvores cresciam lentamente com a azeitona sazonal a ser colhida pelas mãos da avó que também sachava e plantava couves e alfaces.
O jardim de hortênsias estava entregue à mãe que lhe dedicava o pouco tempo livre, apenas o que lhe sobrava de cuidar da casa e dos cinco filhos sempre a exigir a sua atenção.
O avô vivia na procura de uma exposição permanente ao calor; ao sol no verão e aquecendo as mãos e o corpo à lareira no inverno; numa cozinha onde o fumeiro agradecia sempre o lume.
Usava umas camisas que eu achava elegantes, ou seria apenas o seu corpo magro e o seu chapéu a dar-lhe um ar de quem tinha vivido aventuras que um dia me iria contar. Não sei.
O avô era um homem frágil e doente na velhice. Morreu em casa e foi amortalhado pela nossa vizinha, a ti Luz Pereira, que tinha em Alcains essa dupla função de ajudar a nascer a maior parte dos alcainenses como parteira experiente que era; e que ajudava na elegância o defunto na sua despedida da família e dos amigos.
A morte do avô foi a terceira a que assisti de perto.
A primeira, foi a de um vizinho, o Osvaldo, que morreu jovem de um tumor cerebral e que guardo na memória a sua agonia pelo gesto que todas as vizinhas faziam (o sinal da cruz) nas conversas daqueles dias lentíssimos no Bairro das Flores; sempre com a frase enigmática que não entendia naquele tempo em que todos sussurravam ao fazer o sinal da cruz: “um nascido, salvo seja”.
Quando o meu vizinho morreu levaram-me a vê-lo e não o reconheci. A operação à cabeça tinha-lhe levado o cabelo; e o esforço de uma vizinha que me pegou ao colo para o beijar pela última vez deu-me a primeira experiência do corpo frio da morte.
A morte do avô foi calma, com uma leveza que ele aprendeu em vida. Foi triste, mas não muito mais do que o olhar e o sorriso tímido com que ele pontuava a sua existência, como se o seu silêncio escondesse uma vida cheia de acontecimentos que a neta não poderia nunca entender; mesmo que ele contasse.
Um dia levou-me junto com a avó, numa carroça, ao Monte Fidalgo, para visitar um casal de amigos que não via há anos.
Amigos com quem o meu avô tinha partilhado essa misteriosa tarefa de guardar rebanhos e fazer queijos com lentidão e paciência.
Nunca tinha visto o avô tão contente e eu nunca comi paio tão delicioso como o que o casal nos ofereceu ao lanche.
Foi seguramente um dos momentos mais intensos da minha infância: a aventura da viagem na carroça, com duas das pessoas que muito amava; e por ver a felicidade no rosto do avô no seu reencontro com parte do seu passado.
Fui tão feliz naquela tarde, na companhia daqueles dois casais de velhos que, a seguir, quando me perguntavam o que queria ser quando fosse grande, a minha resposta era clara e afirmativa: - Velha!