30 outubro 2013

Carlos Semedo
A cidade e as serras

Mariana gosta muito de olhar as serras que rodeiam a sua cidade. Descobriu há dias que rodear não é o verbo adequado. Prefere abraçar. Mariana gosta muito de olhar as serras que abraçam a sua cidade. Rodear é estar perto, estar por ali. Abraçar é estar perto, estar por ali e tocar. Umas vezes suavemente, outras com alguma força. Ocasionalmente, abraçar violentamente.
Mariana confidenciou a um amigo que está mesmo apaixonada por uma das serras. O amigo sorriu e não levou o assunto muito a sério. Paixões serão coisas de homens, mulheres e até admitiria a intromissão de um gato ou passarinho, mas uma serra, isso é absurdamente bestial. Mariana deu conta da incredulidade do amigo e perguntou se era assim uma coisa tão esquisita. Deu exemplos de escritores, pintores, fotógrafos e outros poetas da montanha, mas o amigo continuou a não dar grande valor à revelação e desviou a conversa para o caso de uma paixão aparentemente consumida de um filósofo e de uma estrela da decadente tv.
Mariana irritou-se, algo que lhe acontece raramente. Custava-lhe muito que o amigo não entendesse a sua atracção por aquela serra mas, muito pior que isso era o facto de ele tentar desviar a conversa para um assunto tão rasteiro e que só devia dizer respeito aos próprios. Pegou nervosamente no telemóvel e mostrou-lhe algumas fotografias que tinha feito no local. Quando as mostrava, pensava que parva era ao tentar explicar a força de uma serra através de imagens num ecrã diminuto, sem o som, sem os cheiros e, sobretudo, sem a escala.
E assim foi. O amigo lá condescendeu que a serra era muito bonita e, pensou sem rubor a denunciá-lo, a estrela da tv também. Aliás, é mesmo muito gira, pensou, procurando não o revelar com o brilho nos olhos normalmente associado a estes deslumbramentos. E pensou que tempo a olhar para serras era tempo perdido e logo agora que é preciso trabalhar mais uma hora por dia e que se tornou gesto antipatriótico qualquer espécie de perspectiva de contemplação aparentemente inútil.    
Mariana, habituada a ler os mais ténues sinais no comportamento das pessoas, percebeu que o amigo não respirava o mesmo ar que ela e que as primeiras páginas de alguns jornais, lidas pela manhã, o condicionavam de uma forma esmagadora. Tinha também reparado que quase todas as conversas do pessoal, no emprego, passavam por aquela tragédia íntima de duas pessoas que ninguém realmente conhece e não a surpreendeu que o amigo falasse no caso.
Mariana gosta de tocar com o olhar as serras que abraçam a sua cidade. É essa a sua leitura, quando se levanta pela manhã e vai à janela. Sente-se feliz, dessa forma. Entretanto, convenceu o amigo a ir com ela, no próximo fim-de-semana, até à serra que a apaixona.

29/10/2013
 

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