Antonieta Garcia
Uma manhã na praia
A praia sabe o sabor da liberdade. Despe os preconceitos, manda os corpos fruir o sol, o mar, o vento. À beira mar, gentes várias expõem o delírio da Criação.
Sendo todos diferentes, são iguais – cabeça, tronco e membros -, e uns mais iguais do que outros. Ainda que a indiferença seja a mãe da maioria, outros sobressaem por múltiplas razões.
As crianças são felizes, chapinham, brincam, esperam as ondas, medrosas, ou tão afoitas que os pais desesperam. Qual água fria, qual quê?! Castelos na areia, corridas, baldes e pás, bolas de Berlim, água e mais água, um geladinho, conchinhas… e reclamações, birras e pedidos irrefreáveis, abrem rosários de educação… ou falta dela.
Os jovens, de corpo aristocrático, deuses maiores, desatinam em todos os tons, em busca de luz que eles sabem. Passeiam, em bandos, a elegância, o gosto de viver, o companheirismo, o amor… Divertem-se e falam, acertam jantares, encontros para mais logo. Raparigas muito, muito formosas são crismadas por olhos invejosos e conservadores do fato de banho - do tempo do cabo do mar que vigiava tamanhos permitidos – de pecadoras impenitentes mesmo que no currículo não constem transgressões de maior. Trazem olhos assotainados a enrodilhar frases e a debitar culpas velhas a evas quotidianas.
Também há algumas cujo corpo precisava de ser acepilhado: desmandos gulosos arredondaram mesmo o que não deviam. Não se lhes peçam encantos visíveis; se existem, estão mudos, escondidos para quem querem. Muitos trazem olheiras de muitas noites de sono rápido, vá lá saber-se porquê. Férias para descansar? Quem disse? O descanso tem tempo.
Entre eles, aquele parzinho entende-se mesmo calado. Os olhos falam em prosa e em verso, consoante os dotes, o verbo amar. Ai, os jovens!
Os telemóveis não emperram, cada um com uma musiquinha mais estranha do que o outro. São mensagens, chamadas não atendidas, e muitos ficam horas amarrados a pôr a comunicação em dia.
Perturbam os solitários. A tristeza apareceu com uma jovem. Escolheu um toldo. Manteve o vestido, que o vento soprava fresquinho... Foi passear. Esgotada. Costas pesadas, curvadas. Um olhar vazio e amargo de uma mágoa do tamanho do mundo. Regressou ao toldo; trazia uma mão cheia de pedras que o mar afeiçoara. Como as escolheu? Sentou-se, abriu um livro. Largou-o. Estirou-se na toalha, vestida, fechou os olhos. Abriu-os para fitar uma criança que chorava. Não era nada. Ensimesmou de novo. Tão triste, tão triste…
Os que entraram nos …enta, alguns, em bom estado, correm e, sem que consigam músculos à Cristiano Ronaldo, recomendam-se. Também os há anafados, exibindo barrigas despudoradas, vermelhuscos, sacudindo gordura, flacidez. Bons garfos, adeptos convictos de gastronomia sem peias, não desmobilizam da boa comida. Às vezes, já pedem licença a uma perna para dar lugar à outra…
Olha aquela senhora que vocifera e esbraceja ferozmente! Hitler de saias, com falsetes estridentes, poderosa, que ninguém ousa interromper, ou contrariar… enfurece-se contra o quê? Governo? Vizinhices? Malfeitorias de quem? Ouvem-na com dificuldade os acompanhantes, de igual idade… Incomodados, disfarçam… olham para o lado… Amanhã, virá sozinha?
Em competição, ainda que em tom menor, ouvem-se frases embrulhadas sobre o mundial de futebol. Pelos nomes que debitam percebe-se que seguem o campeonato com devoção; se já não torcem por Portugal, elegeram outros santinhos para venerar. Maioritariamente Brasileiros, claro!
Aquele senhor de cabelos brancos mergulha estoicamente na água gelada… Em demanda de um vigor antigo que o tempo foi roubando? Quantos anos resistirá?
Que interessante: até os mandarins se tornam gente comum, se ousam um bom banho nas salsas ondas. Pois é! Em calção, desguedelhados, ninguém é importante…
Mas, na minha praia há uma liberdade de sol e sem que ninguém se conheça, o sorriso é fácil a sublinhar férias, bem-estar, cumplicidade… E a nudez da humana condição com arreliados, tristes, alegres, aventureiros… e sol, muita luz, à vista de todos, finalmente é tão cordial e aprazível… mesmo em dias frios!