Luzes da Memoria; Territorios de Abel Dias Gama
28/12 a 24/02
O Museu Arqueológico Municipal José Monteiro, Fundão, tem patente, até dia 24 de fevereiro, a mostra Luzes da Memória; Territórios de Abel Dias Gama, que reúne fotografias captadas no Concelho do Fundão, na década de 50 e 60 do Século XX, por Abel Dias Gama, um até agora desconhecido fotógrafo Fundanense.
Abel Dias Gama (1903-1978), nascido em janeiro de Cima, foi um empreendedor industrial e comerciante do Fundão, um homem da cultura, do desporto e apoiante do associativismo do Concelho. Foi sócio do Casino Fundanense e sócio fundador do Sport Fundão e Benfica, um dos clubes que dará origem à Associação Desportiva do Fundão.
Coordenada pela equipa do Museu, a exposição é um pequeno ensaio de um património imagético salvo in extremis que ficará, a partir de agora, à disposição de toda a comunidade no novo espaço expositivo do município Fundão, localizado na Rua Dr. João Pinto, à Praça Velha. O conjunto de imagens fará parte do fundo documental integrado no Centro de Estudos do Território, Mobilidade e Patrimónios (CETMOPA) a ser, em breve, inaugurado na Rua da Cale. Este centro de investigação reunirá um conjunto de fontes e de estudos das áreas do Património Cultural, da Museologia e da História Local, vinculando a importância da cultura, da história e do património nos processos de desenvolvimento local e regional. A propósito da exposição o diretor do Museu, Pedro Salvado, escreve sob o título Luzes da memória territórios de Abel Dias Gama, que “Esta mostra, pequeno ensaio de arqueologia da imagem, materializa e alumia um surpreendente conjunto de fotografias fixadas a partir do olhar de Abel Dias Gama (1903-1978), marceneiro de profissão determinada, caminheiro que percorreu outros mundos, industrial empreendedor e arrojado, toda a vida ligado ao Concelho do Fundão, território de excelência do continuado enraizamento do seu peculiar registo. Quando um dia se fizer uma história da imagem originada a partir dos horizontes entre a Estrela e a Gardunha, Abel Dias Gama será referência obrigatória como um exemplo da apropriação e reprodução dos sentidos associados ao ato de fotografar e dessa inexplicável vontade em se registar momentos ou planos do seu itinerário vivido num continuado inventário de olhares. Salvo in extemis, o conjunto imagético demarca uma linha porosa de apreensão quase jânica, conjugando uma face testemunhal com outra evocativa que nos aproximam a realidades passadas mas que infundem uma dinâmica de leitura que se projeta no futuro. Marcando tempos e circunstâncias, as imagens, de uma saliente singularidade estética, são documentos-instrumentos de visualização do passado, reminiscências de momentos que agora são e se iluminam através da memória individual ou coletiva. As fotografias são artefactos arqueológicos, ferramentas mnemónicas significativas que religam e contestam, complementam ou comprovam aquilo que entendemos por passado, constituindo «um presente perpétuo e simultâneo que autoriza todas as leituras e releituras» como enfatiza Philippe Dubois. As imagens, para além de «uma cenificação do desejo assim como da temporalidade do sujeito», divulgam as atmosferas ruidosas dos mercados semanais, os ócios e os negócios, os calendários e as ciclicidades dos dias de contentamento, de festa ou de nostálgica monotonia campestre, de repetibilidade cultural religiosa das procissões, das mudanças e das permanências mas, também, do sentir da quebra dos espartilhos do olhar e da liberdade imagética na viagem até outros ares e lugares.
António Paulouro, quiçá a figura mais determinante da comunidade e da materialização de um certo viver a partir de um interior na segunda metade do Século XX, descreveu deste modo a cadência social e cultural do espaço urbano que Abel Dias Gama fotografou apelando à necessidade da comunidade se lembrar: «Era uma vilazinha modesta, de pacato viver, onde as datas relevantes se contavam pelos dedos: a autonomia municipal em 1747, estrada real em 1864, caminho de ferro em 1891, precária mas arrojada iluminação elétrica em 1908, cinema em 1916, eletrificação do Concelho em 1939. A população crescia devagar, apesar da abertura a poente que permitiu a dezenas de aldeias, e à mais importante empresa do interior, a Mina da Panasqueira, o acesso ao comboio e fez o polo comercial que o Fundão ainda hoje é. Os 2.375 habitantes de 1864 apenas duplicaram, 4.783, em 1940.
Melhor se pode avaliar a pequenez do burgo pela malha urbana dos limites da vila. A norte a Empresa de Moagem, a sul a casa do Nunes, na estrada do Convento, a nascente a Padaria Mecânica, a entestar a Fontainha, e a poente a Escola Conde Ferreira. Estávamos em 1944 e a referência epocal tem interesse para o que vai ler-se. No Terreiro de Baixo e na Quintinha só oito anos depois se abriria a Avenida, chamada de Salazar conforme o uso desse tempo e que só em 1974, em abril, claro, passou a ser da Liberdade. Custa a imaginar como era o Fundão sem Avenida, mas era. Como era a Estrada, agora a Rua dos Três Lagares (!) que tinha do lado nascente apenas uma casa e do poente a Quinta dos Penedos. Foi nesse quadro de limitações resignadas e a crise de abastecimentos agravada pela Guerra que um homem de larga visão e de tanto amor a esta terra que maior ainda não houve e depois abnegadamente manteve a ideia da construção de um novo hospital. Havia um, secular marco de ímpar generosidade, obra da Misericórdia. Como o novo igualmente seria. Mas o velho era um hospital de pobres. Os ricos e remediados, até muito pobres, tratavam-se em casa e morrer no hospital era um ferrete de indigência».
E se as mudanças ficaram fixadas em imagem, igualmente foram impressas as solidões, os vazios dos espaços das novas obras e os plurais complexos sonoros que se libertam das imagens ligando e escutando a sonância das palavras. Estamos diante de autênticos xilemas e fluemas da seiva da memória, numa atitude de plantador e ao mesmo de carpinteiro burilador dos anéis imagéticos da grande árvore da memória do seu Fundão.
Deluze referiu um dia que a imagem-tempo da fotografia são vários formas de presente. E foi este diário de presenças de acontecimentos que o amador da imagem fundanense escriturou e que se pode continuar a ler hoje. Para Deleuze passamos, com efeito, de uma forma longitudinal para uma forma “vertical”, de um tempo cronológico para um tempo – memória, recordando as palavras do poeta Péguy: «A história é essencialmente longitudinal, a memória é essencialmente vertical».
A memória aviva-se com escritos-imagens de luz, a história também.
Pedro Miguel Salvado