Antonieta Garcia
Decadências...
O ano de 2015 começou com um frio que enregela; geadas doidas esfriam o corpo, tornam-se “caramelo”, nos sítios onde não bate o sol, mordem os pés até doer. Gritos de gelo pingam onde corre água. Em casa, guarda-se o calor, avaramente.
São dias longos, a malandrar, a adiar saídas… Enrolados em mantinhas, xailes, e chazinhos quentes, animam-se as leituras. Ao fim de semana, escalpelizam-se os jornais. Lê-se quase tudo. E se há textos que nunca se perdem, outros aguardam paciência para nos afeiçoarmos… para subscrever, ou não, a fama do autor… Com a preguiça de deixar o sítio quentinho, os escritos arrecadam maior atenção.
Ora, um destes dias, sei lá onde, caiu-me debaixo dos olhos uma imagem com umas dezenas de anos, de uma jovem de cabelos “ripados” e franja compostinha, em pose de vedeta, que podia figurar uma qualquer estrela de Hollywood dos sixties… Não a reconheci e iniciei a leitura, curiosa, procurando a identificação. O texto provocou-me uma certa alergia…
O patife do retrato acompanhava-se de uma dissertação sobre a biografia da jovem e servia, em última (?) análise, para (des)qualificar criaturas associando-as aos sixties, como modernamente são batizados os que apoiaram maio de 68, punham flores no cabelo, clamavam pela imaginação ao poder, tinham como lema, Make love not war, lutaram pela liberdade. Sem mais, responsabilizam-nos uns pela decadência atual, outros dizem que libertaram /emanciparam os costumes o que vem dar quase no mesmo.
Libertar, no caso presente, significa, está bem de ver, libertinagem e ideias afins. É este o balanço de uma geração?
Tresandam a desentendimento, a fotografia e o texto. É sempre redutor aplicar uma etiqueta a uma pessoa, quanto mais a uma geração… em que cada um era/é um indivíduo. Variedade não faltava, como sói acontecer com todo e qualquer grupo de pessoas. Resumindo: havia os revolucionários, os oposicionistas e os defensores do regime, marxistas em vários matizes, todos a reivindicar puro-sangue (os M.L.- marxistas-leninistas - diziam-se os mais castiços, os mais bravos), os maoístas que uma ou outra vírgula separava na interpretação de uma bíblia, secular e simplória, encadernada a vermelho, e que pintavam tudo quanto era parede para ensinar o proletariado com palavras de ordem, os salazaristas verdadeiros, os encavacados e os apaniguados, os pacifistas e os nem por isso, os beatos, os ateus, agnósticos, os que viviam a sua vidinha… Quem não era nada disto nem queria ser coisíssima nenhuma e apregoavam que a sua política era o trabalho. Amorfos, obrigados e veneradores contavam-se às grosas… Isto de maneira rudimentar, e simplista.
Porque até havia jovens vencidos, alheados, sem interesse, distraídos, impassíveis perante graves problemas, moralistas repelentes, de coragem curta. Por exemplo, parecidos com aqueles que, despudorados, escreveram nas redes sociais que os cartunistas do Charlie – Hebdo estavam a pedi-las, que aconselhavam moderação.
Muitos falam de cátedra sobre todos os assuntos, a coberto de um certo anonimato, com amigalhaços que nunca viram e só amam do face book. Não sei quantos likes assinalaram o ultraje de tais prosas. Mas… livres, têm o direito de dizer o que pensam, sem medo, sem serem punidos.
A verdade é que os tais sixties, em Portugal, sofreram a censura, ditadura, guerra… e elegeram a liberdade, incluindo a de expressão, como marca da dignidade humana.
Liberdade tem limites? Tem! Mas quem pode/deve defini-los? Se cada um não assumir a cidadania…
E se a alforria da palavra incomoda, se tentar a igualdade de género abespinha, se querer diminuir as desigualdades sociais contende com os nervos, talvez um calmante...
Trivialidades? Serão. Mas magoa, perceber, outra vez, que há criaturas que se calam e aconselham o silêncio e se inclinam perante gente bárbara, perversa, hipócrita que não esconde o que é capaz de fazer… se tiver espaço.
Creio, porém, que os cabelos ripados não tardam aí, os fatos hippies nunca passaram de moda, definem um estilo, as cabeças continuam a pensar e a dar conta de um puzzle cuja construção carece de peças que têm a ver com o corrido e o lido. Irreverente esta geração que até perdoa o que dela dizem, porque defende a liberdade como um direito inalienável. Decadentes ainda? Alguns…