17 de fevereiro de 2016

Maria de Lurdes Gouveia Barata
A moda: futilidade e procura

No dia brusco ameaçando chuva, com um friozinho penetrante, embora sem vento, vi passar a miúda adolescente, saltitante e alegre, segura de si, agitando a cabeleira e os fiapos das calças de ganga: completamente rasgadas nos joelhos, que umas tirinhas de fios a querer rebentar de vez seguravam. Joelhos totalmente expostos ao dia frio. Arrepiei-me um pouco, sou muito friorenta, e quase admirei aquela coragem, cuja força lhe vinha da moda ditadora. E cara! O resto das calças era pródigo em buracos e rasgões mais pequenos. Fiquei a vê-la desaparecer e pus-me a magicar naquele vestuário, que pessoalmente detesto, embora cada um deva andar como lhe aprouver.
A moda adoptada por alguns nem sempre favorece o corpo ou o aspecto (estou a lembrar-me doutras situações) e é aí que me interrogo sobre a escravização à moda. Muitas obras e artigos se têm publicado sobre o assunto. A moda evoluiu e continuará a evoluir conforme tempos e contextos espaciais, havendo retornos e tornando a passar na efemeridade imposta por cansaços e negócios. Não posso, todavia, deixar de rir quando me lembro dum desfile a que assisti na televisão, já vai um tempo, em que quase todas as modelos traziam um olho tapado por penas ou chapéus ou já não lembro bem o quê, qual pirata cego de um olho… Decerto foi só para a passagem de modelos. Sei lá.
Na sociedade contemporânea é preciso inovar, inovar, inovar, para que aumente o consumo e chegou-se ao inimaginável no tempo dos nossos avós: roupas rotas, com pontas (eu até gosto das assimetrias…), num rompimento total com a tradição e numa ansiedade pelo inédito, considerando como único valor a inovação, seguindo-se logo a contingência, porque a passagem é imperiosa para outro novo, que breve, breve será velho… O corpo elege-se objecto de culto, é um corpo para reciclar, lembrando-me, a propósito, da obra de Lipovetsky, A Era do Vazio, que aborda esta problemática no capítulo que intitulou de «Narciso ou a estratégia do vazio». É ainda a moda que concretiza a ditadura de uma estética da magreza, que arrasta a anorexia e a bulimia, não só para modelos profissionais. A formação começa logo nas pequenitas que brincam com a Barbie…
Cultiva-se a sensação, muitas sensações, e querem-se mais sensações, sensações novas, experiências novas. Recordo (e não sei bem porque me lembrei agora disto) a observação duma professora que tive na Faculdade de Coimbra: falava-se de literatura, sobre a apetência do mais e mais no contexto de certa produção escrita e dava o exemplo: quem gosta de picante na comida vai sempre aumentando o picante progressivamente para sensações cada vez mais fortes. E aumenta de novo… Na procura desenfreada do mais e mais pode-se talvez justificar o êxito estrondoso do «Deixei tudo por ela» do Zé Cabra, no dealbar do ano 2000. Comprar um disco para ouvir cantar desafinado e sem ritmo não lembra ao Diabo, pensava eu. E, se calhar, só lembra ao Mafarrico que espreita continuadamente os homens e se aproveita do cansaço que os invade, e levam um Zé Cabra para casa para poder rir, e compram caro umas calças todas rotas e abrem a boca de admiração perante o fato de um rei que está completamente nu.
A descontracção de atitudes imprime-se na moda actual em linha de opção que quer manifestar a expressão de si, numa cultura de massa que impulsiona o hedonismo no desejo de pequenos prazeres ao alcance de todos nesse império do efémero, obra homónima do mesmo autor citado. É um neo-narcisismo que privilegia o desvio como fonte de criatividade para agradar, chamar a atenção, apenas momentaneamente na perspectiva de tudo o que é descartável. Um neo-narcisismo em que o eu se inscreve na cultura de massa, deslocando-se de si na acepção tradicional. Já dizia Bernard Shaw que «a moda, afinal, não passa de uma epidemia induzida».
No entanto, «quanto mais o Eu é investido, feito objecto de atenção e de interpretação, mais a incerteza e a interrogação crescem» (Gilles Lipovetsky). Disse ainda o mesmo filósofo numa entrevista de 2002: «Quanto mais a sociedade se volta para o espectáculo, para a frivolidade, mais aumentam a sua ansiedade, angústia e depressão». Estamos, porém, diante da eterna procura da felicidade. No caso da moda, temos uma visão materialista que não responde a essa procura. Nem sempre a exibição colhe os resultados pretendidos, os excessos e o mau gosto pioram esses resultados. Mas o homem continua a procurar-se.

17/02/2016
 

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