Antonieta Garcia
TU NÃO ÉS DAQUI!
A esplanada estava cheia de sol. Os miúdos brincavam, como só eles sabem. Ali, à mão, estava um desvão da montra… e a imaginação voa. Sobem, saltam, serpenteiam e descem em acrobacias de fazer temer os adultos mais permissivos. Afinal, não caem, gastam energias e corados como maçãs camoesas, são felizes. O paraíso, afinal, existe.
Corria a tarde a prometer a fruição do calor do sol de inverno, iluminado ainda com a alegria dos ganapos a inquietarem, como pertence. De repente, entra no Café uma menina morenita com quatro anitos, não mais. Vem com os pais e uma irmã, sete anos feitos, talvez. A permanência no interior é rápida. Os pais saem, mas a mais pequena quer brincar; disputa aquele recanto a pedir tropelias, ascensões, descidas e quedas… adivinha-se um tombo. Incomodam-se alguns senhores, com tal ousadia. A irmã percebe. Quer tirá-la daquele lugar. Os pais já se afastaram; a miúda resiste e recusa. Depois de alguma luta, irrompe a ordem: “Tu não és daqui!”
A garotita entendeu? Quem sabe!? Mas a birra diminuiu e, em menos de segundos, estavam longe. Era cigana, a pequena.
Na minha terra, a maioria dos ciganos não tem dinheiro e vive em casas pobres. Vendem nas feiras e mercados. Têm dificuldade em encontrar trabalho. Ouço: “Eles é que não querem trabalhar!”
Pergunto: “Recebia, na sua casa, uma cigana, como mulher-a-dias?”
Resposta pronta: - “Na minha casa não entram!”
Confirmei: ideias feitas não faltam e a conotação pejorativa que envolve a expressão “uma ciganada”, ou o sentido do provérbio “um olho no burro, outro no cigano”, o insulto usado com o vocábulo “cigano” justificam separações e exclusões. Há etiquetas redutoras que impedem o respeito pelo Outro. Fecham-se os olhos da alma e escancaram-se os da imaginação capazes de legitimar qualquer preconceito. Não sendo Quaresma, o célebre jogador de futebol, ou bailarinos e guitarristas de renome mundial, entre outros, o cigano é o que age com astúcia e tenta enganar alguém. Logo, é trapaceiro, burlão, velhaco. A mulher cigana partilha os mesmos traços identitários; acresce-lhe o ser meia feiticeira: sabe ler a buena dicha na palma da mão. Para o bem e para o mal são guardiãs da tradição e convivem mal com modernices. Ainda dificultam o acesso à escola das raparigas. Alertam: - “Não te casas!”
E vão agrupando caraterísticas negativas que marginalizam, excluem. Talvez tenham criado limites a si próprios, talvez se atribuam uma menoridade qualquer. O aproveitamento escolar, na maioria dos casos não é famoso… mas faltam tanto! Quando e como aprender? Desprotegidos, validam apenas uma notória solidariedade entre companheiros. Afinal, defendem-se como podem e sabem. Em contextos variados, ora se apresentam como vítimas e exploram fragilidades, ora são heróis de histórias… que nem sempre acabam bem.
Um número demasiado reduzido sonha e supera barreiras, tem sucesso pessoal. A confiança na escola, na antiga aliada da humanidade na transmissão do conhecimento, pode mudar o destino. O sistema educativo deve ser um garante da igualdade de oportunidades. Sabia-o Mandela: “A educação é o grande motor do desenvolvimento pessoal. É através dela que a filha de um camponês se torna médica, que o filho de um mineiro pode chegar a chefe de mina, que um filho de trabalhadores rurais pode chegar a presidente de uma grande nação.”
Aquela miúda quando, determinada, puxou pela irmã e disse: “Tu não és daqui!”, sabia do que falava. Sem drama, passava a mensagem de séculos de histórias de vida. Com o que ouvira contar, participava, afinal, na construção de um manual de comportamentos a observar, para sobreviver pacificamente. Sensatez, raiva e o desejo de ser como as outras assomaram nas palavras da menina morena. Vejo-a, de vez em quando; ainda não usa leque mas já dança com arte, com mistério. Marca o ritmo com as mãos e pés, segue o canto de outros, revigora o corpo e alma, entrega-se à melodia com alegria. Acompanham-na outras mulheres e moças, honram trejeitos de anca, elegem os movimentos certos, libertam-se.
Avisou a irmã: “Tu não és daqui!”
Esqueceu o lema do seu povo: “O céu é o meu teto, a terra é minha Pátria e a liberdade é minha religião”? Ou deseja que sua irmã, a mais pequenina, viva num mundo que os outros não vislumbram e onde é melhor morar?
Em tempo de Trump, por onde anda o desejo de construção da igualdade, da liberdade e da fraternidade… para salvar a Humanidade?