14 de março de 2018

A SEGUNDA ESCOLA: ENTRE A CLEPSIDRA E A AMPULHETA

(A propósito da visita ao Geopark Naturtejo de quatro representantes chineses do Geoparque de Funiushan)
Este artigo sai intencionalmente dos cânones tradicionais: trata-se de uma efabulação sobre alguma história do presente.
Defendo, sinceramente, que toda e qualquer fábula não deve limitar-se aos enredos do nem sim nem não, antes deve tirar a ruga do nariz da bruxa, se a houver, mostrar que as fadas trabalham no duro e que os gnomos, monstros potencialmente verdes e irrequietos, são na verdade estudantes em fim de ciclo que vivem e trabalham (teoricamente, pelo menos) todos os dias numa floresta-escola, ao mesmo tempo que vão tendo os seus sonhos corriqueiros, com o que julgam ser a planície e lhes parece estar lá fora — a Segunda Escola (quando ela for instituída).
Enfim, o que quero dizer é que nas fábulas nem tudo é narrativa fácil ou enredo simples.
Porque é minha convicção que a abordagem apresentada em “quase fábula” pode gerar outras leituras, assumo a escolha e corro o risco.
Eis a quase fábula:
Há alguns anos, acompanhado por alguns alunos, fui levado, em forma de sequestro voluntário, por um conjunto dos tais gnomos verdes a uma outra realidade dentro da floresta. Temendo ser presos pelos duendes saudosistas da aula magistral, fomos seduzidos pelo espírito da floresta, enfeitiçadas por todas as bruxas e magos possíveis e imaginários.
Num único ano, que nos pareceu um dia, controlados ao sol pelo movimento dos grãos da ampulheta e à noite pelo sussurrar mágico da clepsidra, conhecemos, enfim, no desconhecido universo, a cidade perdida no vale profundo e roubámos as moedas do pote de ouro, escondidas para lá do arco-íris. Estivemos na casa invisível da floresta, soubemos os segredos das fadas e dos magos e os anseios daqueles verdes seres mágicos que mostraram os seus trágico-cómicos feitiços de amor e desamor, fundamentados em ilusão ou no contrário.
Entre o renovar da areia e o retomar da água voltávamos, por breves instantes, ao mundo dos mestres-duendes que quase começava, mas sempre a tempo de agarrar a escola e, com ela, outros gnomos desejosos de novidade.
Depois dos intervalos, os inovadores lançavam as runas e liam os sinais orientadores dos cristais. Assim continuava a tal escola peripatética dos gnomos, duendes, fadas, magos e também de algumas bruxas (na maior parte boas), três trimestres inteiros e uma noite, rumo ao norte.
Atravessámos o Abismo das Almas e, rodeando a Montanha das Tentações, trepámos, sem medo, ao monte da Noite para chegar, por fim, ao Vale de Todos os Rostos.
Ouvimos por lá, tudo que os dias nos disseram, sentados nas primeiras pedras e iluminados pela luz do primeiro sol, todas as manhãs.
Chegada a noite, descansávamos serenamente, evitando pensar em quase tudo o que nos dizia o dia.
Dormimos debaixo das oliveiras e dos marmeleiros, sem temer a confirmação de Newton. Abrigados e confortados pela gravidade, sempre antes do primeiro do sol na manhã, percorremos todos os trilhos que passaram ao lado das as ruínas de todos os templos, para chegar ao rio.
Chamam-lhe Tejo.
Com o cuidado dos novos leitores, aprendemos a interpretar as margens, a compreender a matemática dos sons, a química potencial dos ruídos e das palavras cantadas entre o salto de um seixo ou o precipício poético do vazio.
Ouvimos o coro do eco e as teorias do zero, como primeiro momento do tudo.
Entre salgueiros e musgos, lama e areias quase douradas, o rio afirmava-se como o duende experimentado e mestre capaz de todas as relações.
Não bebemos da sua água, mas nele despejámos a água cristalina dos nossos cantis, e depositámos definitivamente a clepsidra, porque olhando a corrente pudemos saber exatamente onde ficava a fonte.
Numa cascata, que descansava num lago intermédio, o rio acalmou a calma agitada dos que saímos da floresta, para que pudéssemos seguir.
E foi assim, cheios de dúvidas, que chegámos, por fim, à terra dos Dez Homens que guardam, para si, na Segunda Escola, a passagem para o outro lado da planície. Fomos levados para a sala das janelas de olhar para dentro e usámos então, como prova, tudo o que os dias nos deram e o rio nos ensinou.
Penduradas na parede estavam as sete chaves. Em frente ficava a porta da passagem e nenhum de nós pode dizer que lhe viu, claramente, a fechadura.
«Mostrai!» disseram.
Primeiro apresentámos as runas. Poucos quiseram saber o outro lado das suas sombras, porque ansiavam exclusivamente medir-lhe a densidade. Foram reprovadas.
Tentámos depois explicar a importância do brilho dos cristais e como podem iluminar as sombras e as pontes. Mas submergiram-nos na evidência da água e, aparentemente diluídos, perderam relevância e foram também reprovados.
Obrigaram-nos a descrever, em coro, as sínteses da noite e ignoraram a relação completa das maravilhas das margens, mesmo quando ganhávamos aos grãos da ampulheta, que confiscaram.
Nem todos fomos capazes de vencer o tempo ou os Dez Homens que guardavam a passagem.
Os que ficámos, não fugimos, nem nos demos por vencidos.
Voltámos de novo para a floresta para encontrar o rio, sem tempo de água ou areia, carregando às costas os conhecimentos, as vitórias e também as derrotas sempre necessárias.
No bolso do mais novo dos duendes estava, amarrotado, o papel escrito pelo mais velho dos gnomos e, pela primeira vez, soubemos como se aproximam as idades quando os interesses se encontram.
«Voltai à floresta, tantas vezes quantas as necessárias para fazer vencer o rio. A mais sábia das vitórias é a que decorre das guerras nunca declaradas, onde todos os mestres são alunos e o papiro da norma não divide gnomos e duendes.»
É quase assim na Segunda Escola (quando ela for instituída): viver entre a clepsidra e a ampulheta e sair da Primeira Escola para conhecer o mundo.

14/03/2018
 

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