Carlos Semedo
PÉRSIA
Vivemos tempos perigosos. É muito comum ouvir esta expressão associada às atitudes de D. Trump, B. Johnson, V. Putin, aos atentados, incêndios, à emergência climática e a um rol quase infindável de situações que nos chegam diariamente através de um dispositivo de comunicação tremendo, em intensidade e densidade.
Fico sempre desassossegado com a prontidão de declarações que parecem anunciar o fim do mundo. Pressinto que, quase sempre, se trata de medo do desconhecido e, em muitos casos, de falta de profundidade na nossa reflexão sobre o que se passa à nossa volta. Esta falta de pensamento crítico tem uma face quase totalitária, quando somos assaltados pela necessidade de ter opinião sobre tudo e mais alguma coisa. Ora, ter opinião significa exercer um esforço que não pode quedar-se pela leitura apressada de letras gordas de jornal, rodapés no ecrã de televisão, normalmente miseravelmente escritos ou chavões ouvidos na mesma televisão ou lidos algures na rede. Ter opinião pressupõe um olhar a partir de diversas fontes e perspectivas, um olhar histórico, contextualizador e esse sal do ser humano que é a nossa relação emocional com o objecto em questão.
Com este enquadramento, gostava de fazer alguns comentários sobre um país que tem sido olhado por uma boa parte do mundo ocidental, como uma das faces do mal. Falo do Irão. A minha relação com este país resume-se ao cinema, alguma literatura, a sua música e um fascínio pela história. Nunca viajei até esta zona do globo e conheço pessoalmente poucos irarianos. A imensidão da minha ignorância sobre este país devia, talvez, resultar na abstenção de opinar sobre o mesmo, a partir de bases tão frágeis de conhecimento. Concedo, posso estar a cometer o mesmo erro que muitos motivado pelo que apelidei de totalitarismo opinativo. Acontece que sinto, desde há muito, uma particular curiosidade relativamente a esta zona do mundo, que já foi um centro civilizacional dos mais importantes da história da Humanidade.
O Irão está hoje e mais uma vez sob pressão, com sanções que afectam a actividade económica de forma brutal, com efeito devastador nas condições de vida de milhões de pessoas. O impulso foi norte-americano, com Trump a anunciar a saída do acordo nuclear, esse que segundo a maioria dos relatórios independentes estava a ser cumprido. A pressão norte-americana sobre os seus parceiros foi tanta que muitos outros países, incluindo a União Europeia anuíram em fazer parte de um bloqueio que visa, a atentar nas palavras da administração americana, a queda do regime totalitário iraniano. Acontece que este objectivo é uma subversão total daquele que deve ser o papel das nações responsáveis, respeitando um dos pilares da arquitectura democrática, a soberania de um país e de um povo. Claro que tenho a percepção de que o Irão terá de fazer um caminho importante no que respeita à qualidade das liberdades individuais e colectivas, mas não podemos ser nós a impor um modelo ou uma razão. Esse é um caminho que os próprios irarianos terão de construir. Não deixa de ser muito relevante o facto de esta pressão internacional estar a provocar pontes que aproximam as fações mais contestatárias do próprio regime, ou seja, criou uma unanimidade que não existia, reforçando e legitimando ainda mais o poder vigente.
Este cenário resulta ainda na aproximação do Irão (dispõe de reservas muito importantes de petróleo e gás natural entre outros recursos naturais) a outras nações, estimulando novas centralidades. É o caso da Rússia, Índia, Paquistão e com a China num plano de destaque. Não há nada que impeça o gigante asiático de satisfazer as suas amplas necessidades energéticas recorrendo a Teerão e países circundantes com os quais tem estabelecido muitas parcerias no quadro da chamada Rota da Seda.
O tempo que vivemos é fascinante. As certezas que julgámos eternas, estão agora a ser colocadas em causa e essa é uma fonte maior de receios. O eixo Europa-América do Norte, outrora dominante, vacila por todos os lados (Brexit, fragilidade na política sobre refugiados, dificuldades na política de defesa comum, proteccionismo dos EUA, etc) e parece ter muita dificuldade em agir construtivamente num cenário em que as centralidades são, também, outras.
Não é o fim do mundo, mas sim o mundo a mudar e a exigir novos olhares, pensamento e acção.