Guilherme D'Oliveira Martins
DUZENTOS ANOS DE 1820…
Foi há duzentos anos, em 24 de agosto de 1820 que teve lugar no Porto a nossa primeira revolução liberal vitoriosa. O livro “A Revolução Liberal de 1820” de José Luís Cardoso (CTT, 2019) constitui um repositório rigoroso, acessível e pedagógico sobre a fundação do constitucionalismo em Portugal. A Corte encontrava-se desde 1808 no Rio de Janeiro e o país sentia-se órfão e empobrecido pela subalternidade económica e política. O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves significava desde 1815 a existência jurídica e política de dois reinos. No entanto, a cabeça dessa unidade encontrava-se no Brasil. Tratou-se de um caso absolutamente inédito: uma potência europeia adotou como capital uma importante cidade situada numa colónia, o que naturalmente abriu caminho à independência jurídica do Brasil, que, em bom rigor, não ocorreu em 7 de setembro de 1822, como registam os anais políticos, mas, como se disse, em dezembro de 1815, no momento em que se institucionalizou o Reino Unido, já que, a partir de então, foi reconhecida, antes do mais por Portugal, a independência da antiga colónia. O detonador da revolução de 1820 foi a presença britânica e o facto desta reduzir o Reino a uma natureza subalterna. A longa presença da Inglaterra fora, contudo, indispensável para preservar a independência do País perante a ameaça napoleónica, mas tornou-se opressiva e discricionária, quando não ditatorial, E assim as tropas estabelecidas no Porto juntaram-se para demonstrar a sua oposição à regência que governava em nome de D. João VI e para exigir o regresso do monarca a Lisboa e confiar a uma junta governativa provisória o mandato de preparar a convocação de Cortes com vista à elaboração de uma Constituição baseada na soberania popular. Almeida Garrett dirá: “A última hora da tirania soou; o fanatismo que ocupava a face da terra desapareceu; o sol da liberdade brilhou no nosso horizonte, e as derradeiras trevas do despotismo foram, dissipadas por seus raios, sepultar-se no inferno”. Logo de início, a inspiração foi procurada na Constituição espanhola de Cádis de 1812 e utilizou-se a bandeira liberal para reivindicar um modelo de organização política baseado na separação de poderes e na defesa dos direitos e garantias individuais. A revolução feita sob a invocação da “regeneração da pátria” juntava-se às revoluções britânica de 1688, à americana de 1776 e à francesa de 1789. Estava em causa a soberania assente nas liberdades individuais.
A abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional, a ausência da Corte, o apagamento da participação portuguesa no Congresso de Viena, a condenação à morte de Gomes Freire de Andrade e dos mártires da pátria em condições infamantes – tudo convergiu para o movimento liberal. Manuel Fernandes Tomás, Ferreira Borges, Silva Carvalho, José Liberato Freire de Carvalho, Sebastião de Brito Cabreira, Bernardo Sepúlveda são protagonistas de uma operação vitoriosa que correspondeu aos legítimos anseios do País. Recorde-se que se constituíra no Porto em 22 de janeiro de 1818 o Sinédrio, após a revolta falhada de Gomes Freire, para preparar a revolução liberal – tratava-se de uma instituição clandestina que se extinguiria com a revolução de 1820, tendo vários dos seus membros passado a pertencer à Junta Provisional do Governo Supremo do Reino. A ação do Sinédrio será fundamental na preparação da Revolução vitoriosa, apesar das grandes cautelas com a segurança, perante o precedente do golpe de 1817 e das suas funestas e trágicas consequências. Para os membros do Sinédrio o triunfo liberal em Espanha “foi uma espécie de luz verde que ditou a passagem da fase de observação e vigilância a uma nova etapa de ação direta”. A entrada de representantes do exército no Sinédrio, pouco antes do pronunciamento foi “o sinal óbvio de que, para ser bem-sucedida, a revolução tinha de albergar no seu núcleo dirigente alguém a quem se pudesse confiar a chefia das operações militares. Neste sentido a adesão e participação do coronel Sepúlveda, do regimento de Infantaria nº 18 do Porto, viria a revelar-se absolutamente crucial e decisiva”. Deve ainda referir-se a participação no núcleo revolucionário de representantes do clero ilustrado, como Frei Francisco de S. Luís, e da fidalguia transmontana, na pessoa de António da Silveira Pinto da Fonseca. Como disse Silva Carvalho: “Rompeu o dia 24, e ao som dos clarins, e da artilharia se fizeram em pedaços os grilhões que nos algemavam, e com tanto sossego se proclamou a nossa independência, que ninguém sofreu o mais pequeno incómodo: imenso povo assistiu à reunião das tropas em Santo Ovídio, ouviu as proclamações, misturou-se no meio dos vivas, e da alegria com a tropa de tal maneira que quando chegaram à praça nova o contentamento era universal”. Num dos textos mais relevantes dos primeiros dias da revolução, o mesmo Frei Francisco de S. Luís dirigiu-se aos membros da regência de forma elegante e pedagógica, apelava a que nenhuma resistência fosse demonstrada, para que todos pudessem celebrar um momento de honra e reconciliação nacional que libertaria o país do ‘triste estado de miséria e opressão’ em que se achava.
A Constituição que sairia da Assembleia Constituinte que reuniu no Palácio das Necessidades poria a tónica na soberania popular, na independência e separação de poderes, “esquecendo”, porém, o rei ausente – o que exige o regresso rápido de D. João VI. Impor-se-ia o respeito pelo Estado de Direito, mas depressa se percebeu que, em nome da estabilidade, havia poderes que teriam de ser salvaguardados. O Executivo e o Rei possuíam poderes diminutos. Haveria que garantir um maior equilíbrio de competências. Estes argumentos prevaleceriam na “Vilafrancada” (1823), perante a qual o rei prometeria para breve uma nova proposta de Lei Fundamental, que nunca viria a concretizar-se… Apesar da vigência efémera da Constituição de 1822, a verdade é que uma longa e profícua história então se iniciou, plena de conflitos e contratempos, mas finalmente consagradora da causa da Liberdade, como ocorreria depois da Guerra Civil em Évora-Monte (1834) e finalmente no longo período iniciado em 1851, no qual antigos os opositores das guerras civis privilegiaram um acordo em que a alternância política, ao menos formal (rotativismo), se tornou uma realidade, que teve como pano de fundo o quadro importante de liberdades civis.