Antonieta Garcia
OS SAPATOS VERMELHOS
- Não te compro sapatos vermelhos, porque a cor não dá com tudo! Levas os brancos que são muito bonitos!
Manda quem pode! No Verão, usava aqueles feiosos sapatinhos brancos. Montes de tempo arrumadinhos na caixa, eram domingueiros, festeiros de ver a Deus.
Alternava com os mais usados, de trazer a cote, que tinham uma qualidade: eram livres! Saíam de casa, andavam pelos caminhos que escolhiam, donos de um corre-corre, até não poderem mais! Os “novos”, aguentavam-se “branquinhos” um mês, vá lá, dois. Um dia, cada vez mais desconchavados, exaustos, conduziam ao milagre da frase: A garota precisa de uns sapatos! Os que traz estão uma vergonha!
Eram palavras mágicas portadoras de felicidade. Os velhos vão direitinhos para o lixo! Nem com cinco tostões, os querem… És uma Maria estragadora, não sei como pões os pés no chão…
O problema é que não atinava com o tipo de cuidado que garantia a tal perfeição e, verdade: perdiam a graça em três tempos:
- Desconjuntas tudo num instante!
Lamentei: - Nunca me compram uns sapatos vermelhos!!!”
Cansados de tal queixume, meus pais nem respondiam. Bem que nomeava todas as felizardas cuja família não embirrava com cores que não fossem os castanhos ou brancos, ou tons deslavados, enjoativos, bolorentos… Meu Deus, os sapatos vermelhos das minhas amigas eram tão bonitos!!!
- Não comeces com fitas!
Ora, um dia, já na Sapataria, decidi que os sapatos que ia experimentar haviam de ter defeito: ficavam apertados ou lar-guérrimos! Magoavam-me nos calcanhares ou nos dedos, caíam-me dos pés…
- Dói, pronto!
- Olha, assim, não levas nenhuns!
Anui. Explicava o sapateiro gentil: - Eu mando vir!
Alertei: E se não ficam bem? Não gosto deles! Ó Mãe: deixe-me experimentar os sapatos vermelhos!
Decretou: Ficam todos mal, não levas nenhuns!
Aconselhei-me paciência! Os sapatos que queria, nem eram vermelhos, cor do Benfica. Tinham aquele tom de grãos de romã madura, lindos de morrer! Regressei a casa com os velhíssimos sapatos. Não me livrei de sermão de Bispo. O ar ficou carregado de nuvens. Comentava minha mãe: Que vergonha, a fita que fizeste na Sapataria!
Regras de poupança foram relembradas, não protestei, nem argumentei uma só vez. Meus pais devem ter considerado. O Natal aproximava-se e o facto de ser aluna sem problemas, recebo como prenda, em vez da tradicional boneca e habituais chocolates em tabletes pequeninas com pratas de muitas cores e atadas com um fio de seda… uns sapatinhos vermelhos!
- Poupa-os bem!
Era uma narrativa com final feliz.
Só que a Pouca Sorte, essa personagem malvada invejosa, rebelde, deitou a cabeça de fora e confundiu tudo. Eu conto.
Vaidosa como se pode ser aos 11 anos, saí com os sapatinhos vermelhos, ao domingo. O vestido era dos que não podia sujar. Estava feliz e os sapatos haviam de durar a vida inteira. Assisada, durante as primeiras horas, com a brincadeira esqueci-me! Nesse dia, subi a um muro. Fiz como sabia: apoiei-me nas mãos, um impulso valente e… eis o Susto maior, o coração a bater descompassado, com o som de sapatos a ranger na pedra e a desenhar riscos e a levantar a pele na biqueira… Chegaram-me as lágrimas aos olhos! E agora? Brinquei, brinquei, brinquei, como se fosse a última vez! À noite, doíam-me tanto os meus pezinhos!
E o medo ia crescendo à medida que se aproximava a hora de entrar em casa. Meus pais tinham razão; era uma estragadora!
Aflita, agoniada, tremendo… voltei a casa, quando me chamaram. Por acaso, naquele dia, meus Pais, na sonolência preguiçosa dos domingos, não deram conta dos estragos! E se eu arranjasse uma solução? Rezei muito, pensei muito e… achei-a! Fui ao batom vermelho que minha mãe usava, e pintei os riscos das biqueiras dos sapatos. O batom desbotou, oleou, manchou a pele dos sapatos… Desfez-se, perdeu a forma… Os sermões duraram uma eternidade. Parecia feitiço! Tudo me saía mal… com os sapatos vermelhos! Quando os calçava, arranjados pelo sapateiro, nunca mais foram os mesmos. Doíam-me tanto os meus pezinhos! Sapatos vermelhos? Virei sportinguista!