José D'Encarnação
JARDIM DO PAÇO – INSPIRAÇÃO INEVITÁVEL!
Decidira ajuntar numa só crónica alusões breves a cada um dos mais recentes livros de António Salvado. Primeiro, para se não perder actualidade; depois, porque, de rompante, me caíram na secretária quatro ou cinco, a reclamar leitura e atenção.
Desisti.
Esta nova edição de Jardim do Paço exigia nota singular. Editada pela primeira vez em 1967, ganhou, em Dezembro passado, nova roupagem e mui esbelta companhia: papel cuchê de alta gramagem e capa cartonada para bem guardar as 50 aguarelas de José Manuel Castanheira. Um álbum! O casamento perfeito da Pintura com a Poesia, irmanadas ambas nos reflexivos devaneios que o Jardim do Paço acicata. 120 páginas a saborear. Livro para ter à mão e abrir de vez em quando, a folhear na lentidão das tardes repousadas…
José Manuel Castanheira atira-nos, em manchas de cor, para um espaço irreal – e aí nos deixamos enlevar. António Salvado agarra-nos pelo braço, obriga-nos a sentar, a escutar as personagens que pelo jardim vagueiam: os santos, as santas de nossa devoção, os reis e as rainhas, as virtudes cardeais, as estações do ano, os continentes… Viagens no espaço e no tempo!
Pinceladas largas, imprecisas, as de José Manuel Castanheira; pinceladas carteiras, agudas, incisivas, contundentes, as António Salvado.
Das aguarelas não ouso escolher nenhuma – que não consigo. Sugestiva, a reprodução, na página da direita, de significativo pormenor da imagem mostrada na esquerda. Dos poemas, sim, escolho dois:
– Samaritana. A Mulher, o encontro, a fonte… Quatro versos a resumir a prece, dela e nossa: «Enche, Senhor, meu coração de crente / dessa vívida água que prometes: / e não terei mais sede, em todo o sempre / porque ela brotará de fonte eterna» (p. 21). Lapidar! Que mais se poderia dizer?
– Caridade. Consubstanciada na imagem da criança só (ai, a ‘Balada da Neve’, do Augusto Gil!...), aqueles olhares de meninos suplicantes a entrarem-nos, hoje, pela casa adentro, ao fundo as casas destruídas, ainda no ar o fumo dos bombardeamentos… Ali estão. Num terceto e numa quadra. Assim: «Criança de olhar exangue, / perdido, sem claridade, / de pés descalços no chão, / não sei, ó flor sem idade, / ao tocar a tua mão, / se o que percorre o meu sangue / é revolta ou caridade» (p. 41). E está o painel completo. E a mão pequenina que nos apetece agarrar!...
Excelente apresentação gráfica, a cargo da Caleidoscópio (ai, o maroto do scanner que não viu acentos – p. 71 – e trocou o m por rn! – p. 75).
Aplauda-se o inteligente patrocínio da Junta de Freguesia.