Edição nº 1709 - 29 de setembro de 2021

José Dias Pires
O QUE SE ESCONDE NUM LUGAR OCULTO

Ele tinha ausências prolongadas e regulares.
Se alguém lhe descobria o poiso, dizia ter ser sido companhia de um ser que não era, de um estar que não estava e de um querer que não queria.
Foi preciso insistir para conseguir que nos revíssemos.
Sentámo-nos numa mesa junto ao varandim da esplanada do restaurante. A conversa foi antecedida por um forte abraço e um “Até que enfim!” replicado por um “É a vida, acontece….”.
A acompanhar as entradas veio uma garrafa de vinho que ele mesmo escolheu.
Como em todos os dealbares das nossas longas conversas, começávamos por um prolongado silêncio projetado num ponto longínquo que, de facto, nenhum de nós via, disfarçado pelos gestos de acompanhar o copo de vinho tinto à boca (fazia o favor de beber vinho tinto quando estava comigo).
Num gesto inesperado, abriu a carteira que trazia a tiracolo para de lá tirar qualquer coisa e, inadvertidamente, empurrou o seu copo de vinho que foi cair no patamar inferior.
«Mais um corpo morto que afogou as mágoas», disse, com um sorriso.
«Visto daqui, parece sangue, uma cabeça que se despedaça», retorqui, sem lógica aparente, por não me ocorrer mais nada.
«Parece, mas não é. É apenas tristeza.»
«Não te entendo.»
«Olho o vinho perdido, uma maré vazia, e sinto-me ameaçado pela tristeza, tenho saudades do mar.»
«Traduz.»
«É a poesia, o mar. Tu sabes, eu entendo o mar como poesia, sempre poesia.»
«Sei, tens saudades de escrever.»
«Ou de fingir que escrevo. Por vezes, fingir é suficiente lenitivo.»
Era sempre assim. A poesia antecipava a criação e desaguava, automática, em qualquer conversa. A partir dali, era apenas ele e a paixão da escrita. Se houvesse um ouvinte, ainda melhor.
Pedimos outro copo. Encheu-o e bebeu um pouco.
«Sabia que um dia me visitarias. Sem hora determinada, provavelmente mais para o amadurecer da manhã, chegarias para acompanhar a minha íntima solidão. Na verdade, embora possa parecê-lo, eu não estou triste, faço-me triste e espero que o soprar de uma ligeira brisa me acalme as mãos e o pensamento para que chegue à escrita. Tu sabes, é sempre assim.»
E era. Ele sempre fora um escritor de afetos, um colecionador de sentimentos, tão agitados quanto os seus olhos e tão sossegados como a sua voz. Era um poeta das ausências profundas que revelavam o abismo das paixões perdidas e as cinzas das memórias vazias, informes e incapazes de reverter o desamor; era o recoletor das permanências instantâneas que ao olharem as pedras, trabalhadas ou não, descobriam os caminhos para casa, en-trecortado por árvores e terra, aromas e cores, texturas e sons, muros e veredas, sempre anteriores aos horizontes como pontos de partida: aqui uma casa a esquinar a rua, além uma colina a encimar a vila; longe e escondido, o rio imaginado, mas vivo, como se passasse, manso, à soleira da porta.
E saudades, muitas saudades que deixaram cicatrizes em todos os lugares por onde se obrigou a regressar.
Para ele, partir sempre fora fácil. Difíceis eram os regressos: transportavam dores estranhas de tempo e espaço, de corpos e percursos, de meros esboços ou mapas minuciosos e, principalmente vinham acompanhados de medos. Medos de que a boca, transformada em caneta, pedisse à cabeça que se libertasse, antes que a morte das palavras completasse o vazio.
Vazio, esse, que eu nunca consegui compreender.
«Sentes-te outra vez vazio?», perguntei.
«Não, tenho o copo quase cheio. Não vês?», gracejou. E continuou: «Regresso devagar. Sendo longo, o meu caminho é pequeno. São mínimas as margens entre o pensar e o não encontrar nada a não ser um miolo de ruído; um pestanejar, sem proveito, dos olhos; um titubear no andar ou um balbuciar imberbe da voz poética que não me encontra.»
«É por isso que te escondes?»
«Não me escondo, desapareço. Desapareço mesmo. Olho-me e não existo. E se não existo não tenho onde estar, nem com quem estar. Não o mereço.»
Ele sabia que, da sua ausência, o tempo se fazia sabor de nada. Absolutamente nada: ignorância pura e dura que não era preenchida nem pelo tiritar das folhas, por vontade do vento; o encaracolar da terra, pela força da chuva e o crepitar luminoso do sol.
Nestes longos intervalos permaneciam, teimosas, as impossibilidades de recuperar vestígios dos amigos, dos amores, da infância, das paisagens que ajudavam a juntar, em coerência, as letras às ideias e as transformavam em poesia. Primeiro, numa pequena voz soletrada no vagar comovido da saudade; depois, no tom poderoso que acompanha quem regressa a casa à procura da eternidade que se esconde, em cada um, num lugar oculto.

29/09/2021
 

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