José Dias Pires
A DESBONDADE DO MUNDO - PARTE 1
Dei comigo a pensar sobre a desbondade do mundo: será que houve um lapso no projeto original ou fomos nós (o homem para quem foi criado) que demos cabo dele. E, não si porque razão (eu sei, mas tenho vergonha de me incluir no rol) imaginei como terá sido o seu começo. Desculpas antecipadas vos peço, se me enganei.
E tudo começou assim: sobre um ambiente negro e austero, enquadrado pelos pontinhos de luz universais, sobressaia um cadeirão branco no qual estava recostada uma personagem vestida de branco.
Farto de olhar para aquela imensidão descolorida que o rodeava, um belo dia, que por acaso ainda era noite, porque ele ainda não tinha criado o sol, o Pai-de-Tudo levantou-se do seu cadeirão e disse: «Estou farto de estar aqui a olhar para o ar e, como já me dói a cabeça de tanto pensar, vou criar o que há muito ando para criar, pois são tantas as ideias que me consomem. Já sei: vou criar o bicho homem. Ele será o único animal capaz de rir e espero que tudo o que está para vir ao longo da sua história me possa divertir.»
Depois, virou-se para o longe e chamou os ajudantes que eram fundamentais para iniciar a função:«Anjo branco, eu sei que andas manco; anjinho azul, eu sei que ainda estás no sul; anjolas cor de anjo enjoado, imagino-te deitado! Em cinco segundos, sem um porquê, quero-vos aqui! Estão a ouvir ou quê?!»
«A resposta é quê!», disse o coro dos anjos. «A resposta é quê?!» «Sim, a resposta é quê! Ainda não criaste o tempo e nós não sabemos o que são segundos!»
O Pai-de-Tudo puxou de uma caneta branca e escreveu qualquer coisa numa agenda branca que tirara do bolso e disse em voz alta: «Tenho de tomar nota disto! Criar o tempo para explicar o que são segundos! Que diabo!»
A verdade verdadeira é que apenas apareceu junto do Pai-de-Tudo um anjo muito especial: altarico, magrinho, bem falante e vermelho (vi-lhe esta cor sem quaisquer conotações políticas) que, pé ante pé, se aproximou do Pai-de-Tudo pelas costas e para o assustar com um «BUUUUUU!!!»
«Ora esta! Quem és tu, que diabo?!» «Sou Isso mesmo: um diabo, a tua criação!» «Qual? Aquela que me saiu mal?» «Não, a que te saiu bem! Bem, até de mais! Eu sou aquele anjo muito especial, altarico, magrinho, bem falante e vermelho, que vês de manhã quando te olhas ao espelho! Sou o Diabinho Angelical que gostarias de ser! O tal! Criaste-me para quando é preciso… encaminhar, qualquer coisa que não está… encaminhada. Não sei se estás a ver? Para empurrar para fora do rebanho uma alma… desalmada. E não julgues que sou a tua mais nova criação! Não! Seiscentas e sessenta e seis vezes não! Eu sou de todos o anjo mais velho: altarico, magrinho, bem falante e vermelho que tu criaste depois de te olhares ao espelho!» «Pronto, estando mal, está bem. E os outros anjos que eu também criei?» «Ah, esses! Não sei! Mas deixa-os estar que só servem para atrapalhar a nossa função. Vamos lá à tal criação!» «Qual criação?» «Aquela de que falaste! Então?!» «Ah, sim, claro. Vamos ter uma semana e peras!» «Peras? Temo que possam ser maçãs, mas isso não interessa nada. A semana é que mais uma coisa mais complicada!» «Complicada?» «Claro, a semana ainda não está criada! Já criaste os sindicatos, mas a semana ainda não! Sim, uma semana quantos dias são?» (Ouve-se uma explosão) PUM!!! «Já está!» «Sim, já está tudo rebentado!» «Não! Está é criado! Acabei de criar a semana de sete dias, o universo e, de caminho, criei o sol para haver luz. Queres ver? Faça-se Luz!» (E fez-se luz) «Eh lá! Agora já dá para ver que tu és feio como tudo! Pareces um padeiro!» «E tu pareces um tomate ou um piri piri! E eu ainda não criei os tomates nem os picantes! Mas também inventei as estrelas, para haver noite! Por isso, faça-se noite!» (E fez-se noite. O Diabinho Angelical recuou, tropeçou em qualquer coisa e caiu de costas). «C’os diabos! Ó pá! Põe lá isto às claras, que já ando para aqui aos trambolhões e ia magoando… o que tu ainda não criaste!» «Ah, o piri piri! Pois faça-se Luz!» E fez-se luz. O Diabinho Angelical chega-se ao Pai-de-Tudo com uma bola branca na mão. «Estás a ver? Às escuras tropecei nesta coisa!» «Dá cá isso não faças asneira.» «Mas isto é o quê? Uma brincadeira?» «Esta é a Bola Filosofal, a minha obra principal, a mãe da Terra azulada. Terá um jardim na entrada que vai chamar-se Paraíso. E já sei do que preciso: meto lá dentro animais, minerais e muitos vegetais e depois crio a floresta. O homem é o último a criar, para que depois haja festa, mas vou fazê-lo às escuras, para ninguém me copiar! Faça-se noite!» E fez-se noite. O Diabinho Angelical ficou intrigado e, imaginando sabemos lá o quê (eu sei mas só o conto no próximo mês), pensava em voz alta: «A Bala Filosofal?!»