Edição nº 1726 - 26 de janeiro de 2022

Gonçalo Salvado
EUGÉNIO DE ANDRADE: A MELODIA DE EROS POR GONÇALO SALVADO

Como estranhar-se que, entre nós a melodia do homem seja a melodia de Eros? Que poeta português pode negar-lhe a face sem negar ao mesmo tempo o coração? À melodia exasperada e expectante, cálida e apaziguadora de Eros, a esse canto que da fundura do ser remonta às vertentes da morte, deve a minha poesia quase sempre o impulso inicial.
Eugénio de Andrade, “Da palavra ao silêncio”, Rosto Precário, 1979
Enleado na melodia, ora exasperada, ora apaziguadora de Eros, revolucionou Eugénio de Andrade a poesia portuguesa, criando um novo e inconfundível dizer amoroso, perfeita cristalização e irradiação do seu génio. É preciso afirmá-lo, sem rodeios e exagero: se a poesia amorosa portuguesa teve no Século XX intérpretes de relevo, apenas em Eugénio de Andrade encontrou a sua expressão mais luminosa e pura, atingindo, na sua escrita, o seu zénite.
Nenhum poeta é mais intenso quanto o foi Eugénio de Andrade ao revelar-nos os sortilégios do amor e do desejo e como estes inevitavelmente nos incendeiam pois quando “tudo é amor, tudo é ardor”. Por outras palavras: tudo parece deflagrar. A sua poesia é, como nenhuma outra na nossa contemporaneidade, um espelho desse maravilhoso incêndio causado pela passagem de Eros em nossas vidas redimindo-as da precariedade. E ainda que seja o ar o elemento de eleição de Eugénio de Andrade como, aliás, nos confidenciou, a sua poesia rescende camoneanamente, a fogo, em cada verso. Todo o seu fazer poético, toda a sua Arte de Amar, que tentei nesta antologia sinteticamente sugerir e plasmar pode reduzir-se a uma só asserção: “É preciso arder”. Das folhas à raiz. Porque o corpo o sabe. E o exige a alma numa infinda sede e demanda - sempre insaciada - sempre cega - de completude. E de plenitude. Só quando os corpos se entre apetecem e anseiam fundir-se, anunciam na terra o esplendor do paraíso, desacreditando a morte.
Ao tocarmos, ainda que furtivamente, a pele do ser amado, a felicidade logo se presentifica e se nos revela como possível, negando o trágico que enforma a própria condição humana, sempre ameaçada pelo vazio, pelo aniquilamento e pelo apagamento do ser. A união amorosa tem, pois, a meu ver, nesta poesia, um sentido eminentemente humano, exaltada e celebrada até à exaustão, na medida em que é ela que entroniza a vida, lhe outorga o seu destino solar, a transfigura e a consagra em festa.
É para a vivência dessa festa que continuamente apelam os versos de Eugénio de Andrade. Saibamos lê-los e amá-los. E erguendo a taça brindemos à sua perpetuidade.
(Texto lido na apresentação da antologia, da autoria do poeta Gonçalo Salvado, Um Corpo É Sempre Uma Chama - O Fogo e o Vinho na poesia de Eugénio de Andrade, que decorreu a 19 de Janeiro de 2022, na aldeia da Póvoa da Atalaia, no Concelho do Fundão, terra natal de Eugénio de Andrade no dia de nascimento deste emblemático poeta, figura maior da poesia portuguesa do Século XX. Organizada numa colaboração da Editora Lumen com a Livraria Sá da Costa Editora, de Lisboa, em parceria com a Quinta dos Termos, a antologia tem por editor Ricardo Paulouro e insere-se numa coleção de poesia, dirigida por Gonçalo Salvado, cujas obras surgem em formato original livro/garrafa, com o objetivo de materializar a relação simbólica e milenar entre o vinho e a poesia. Esta antologia, que apresenta uma seleção das referências ao fogo e ao vinho na poesia Eugénio de Andrade, reproduz na capa um retrato inédito do poeta da autoria do designer gráfico Dorindo Carvalho. Contém ainda um fac-símile de um poema manuscrito de Eugénio de Andrade oferecido pelo poeta a Gonçalo Salvado, uma nota de abertura do editor, do autor da antologia e uma apresentação de Maria João Fernandes. A antologia foi concebida   para celebrar o centenário de Eugénio de Andrade).

26/01/2022
 

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