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Edição nº 1727 - 2 de fevereiro de 2022

Guilherme D'Oliveira Martins
A DEFESA DO PATRIMÓNIO CULTURAL

Quando nos despedimos com o afeto de uma amizade de mais de quarenta anos em novembro passado por ocasião da entrega do Prémio Vasco Graça Moura da Cidadania Cultural a Emílio Rui Vilar não poderia suspeitar que seria a última vez que nos encontrávamos neste mundo. Registo, porém, o sorriso de sempre do Fernando – o mesmo desde que o conheci, graças a Francisco Sá Carneiro, num velho encontro, animado pela ideia de construirmos uma democracia social e cultural, que pudesse pôr Portugal numa Europa moderna e num mundo global, no qual a língua portuguesa se afirmasse num projeto de paz e de desenvolvimento, com novas independências africanas, nova relação com o Brasil e uma complementaridade viva num mundo global. E o Solar de Mateus tornou-se um lugar de encontros e de afirmação de uma cultura plural, aberta, cosmopolita, criativa e exigente. A democracia tinha de cultivar a qualidade. Portugal deveria tornar-se um ponto de encontro do que melhor se fazia, deixando o velho estigma de velha ditadura, isolada e pobre.
Quem visita a Casa de Mateus apercebe-se de que não há cultura sem vida, sem o fervilhar das ideias e das iniciativas, sem as personalidades que animam a história. Fernando de Albuquerque, cidadão e aristocrata, o Morgado de Mateus, foi o exemplo de quem sempre foi capaz de ligar em permanência a história longa à memória que sempre se vai reconstruindo. Conheci-o no momento em que a democracia se contruía, em 1974. Era a realização da liberdade que estava em causa e, conhecendo a antiga linhagem donde provinha, senti-lhe sempre uma grande coerência, menos preocupada com o passado e mais empenhada num futuro de modernidade e de mudança. Desde cedo, tive o gosto de percorrer os salões da velha casa, nunca como um museu, mas como um lugar onde encontrava amigos e pessoas interessantes, preocupados com o futuro do Portugal democrático na relação com a Europa e o mundo, fazendo da cultura um fecundo diálogo. Os seminários Repensar Portugal, no final dos anos setenta, foram essenciais para a abertura de novos horizontes, assim como os Encontros Internacionais de Música, a instituição do Prémio D. Diniz, os Seminários de Tradução de Poesia Viva, o Instituto Internacional Casa de Mateus, a Residência de Artistas, a atividade agrícola e turística, tudo constituiu um modo ativo de ligar memória e desenvolvimento, democracia e arte. E não esquecemos a atribuição do Prémio Morgado de Mateus, apenas destinado a figuras excecionais no domínio da cultura, a Miguel Torga e a Carlos Drummond de Andrade (1980) e a Vasco Graça Moura (2013). Todos foram verdadeiros símbolos daquela casa extraordinária. E invoco ainda a memória de um amigo comum, que também nos deixou – Vasco Graça Moura fazia parte da alma de Mateus. O seu talento e a sua cultura fizeram e fazem parte da história desta casa maravilhosa. Estou a ver, Fernando, no seu passo miudinho, cuidando para que tudo se passasse com simplicidade e inexcedível qualidade, para que nos sentíssemos bem a fruir o natural requinte e a permitir que a cultura fluísse, em diálogo genuíno e rico entre a tradição e o futuro. E foi com especial honra e gosto que condecorei na Casa de Mateus em nome do Estado português, em representação do Presidente Jorge Sampaio, Gustav Leonhardt numa justíssima homenagem à figura marcante do panorama musical mundial, demonstração de uma cultura sem fronteiras.
Numa viagem em Portugal, se há monumento emblemático do barroco nortenho é o Solar de Mateus, a que Fernando, na tradição de seus antepassados e especialmente de seu pai, instituidor da Fundação da Casa de Mateus, se entregou de alma e coração com entusiasmo e cuidadoso respeito pela essência do património cultural como realidade viva. O Palácio foi mandado construir, na primeira metade do século XVIII, pelo terceiro Morgado de Mateus, D. António José Botelho Mourão, presumivelmente desenhado por Nicolau Nasoni, constituído pela imponente casa principal, uma capela, adega e maravilhosos jardins. A aplicação dos pináculos sobre os telhados e uma decoração elegante concede um carácter único ao monumento setecentista, cuja importância é enriquecida por uma biblioteca de 6000 volumes, no seio da qual se destaca a notável Edição Monumental de “Os Lusíadas” (1817), graças ao quinto Morgado de Mateus, D. José Maria de Sousa Botelho Mourão e Vasconcelos, influente diplomata, designadamente no período napoleónico. A direção artística da obra esteve a cargo do pintor François Gerard, sendo as gravuras, estampadas por Durand, da autoria de Alexandre Desenne e de Alexandre Fragonard (filho do célebre Jean-Honoré). O Morgado conservou em seu poder as primeiras provas tipográficas e as estampas em cobre que se encontram na biblioteca da Casa. São dois autênticos monumentos nacionais, a casa e a obra de arte. Fernando de Albuquerque sempre o compreendeu, procurando afirmar essa responsabilidade como uma atenção especial à cultura enquanto sinal presente de vitalidade e de cidadania.

02/02/2022
 

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