Edição nº 1754 - 17 de agosto de 2022

Lopes Marcelo
TEMPO DE RESISTÊNCIA EM EXPOSIÇÃO

Vivemos tempos de aceleração social e cultural em que praticamente tudo é descartável. É preciso usufruir, aproveitar, consumir e, se já não interessa, deita-se fora ou esquece-se. Nesta voragem do tempo, importa quem ou aquilo de que se possa tirar alguma vantagem imediata, proveito material ou promocional. Neste conceito e contexto apressado de viver é a memória colectiva e, até individual, uma das principais dimensões a desvalorizar e a descartar. Identidade, coerência e humildade são valores cuja pedagogia junto das novas gerações não é valorizada. Não há tempo para parar, reflectir, aprender, interiorizar e partilhar. Resultam assim, pessoas cada vez mais desenraizadas e sociedades menos coesas. Contudo não é obrigatório que seja sempre assim, nem que tal atitude de erosão da memória, dos afectos e do conhecimento, seja comum a todas as pessoas.
Para quem se interrogue e não abdique de conhecer o passado e valorize a sua inserção cultural, com sentido de comunidade e de pertença à comunidade com uma história comum, gostará certamente de se sentar à lareira da memória para celebrar os valores essenciais, bem como os exemplos, os testemunhos de vida dos mais notáveis que, com coerência, humildade e coragem, praticaram e defenderam a sua identidade ao serviço dos ideais mais nobres e ao interesse colectivo. Resistiram ao que era mais fácil e vantajoso, em nome de valores solidários sem a certeza de os poderem atingir. Resistiram por integridade, por coerência, por verticalidade cívica e moral.
Regresso hoje ao exemplo da vida e obra do Dr. Luís Pinto Garcia que está patente no Museu Francisco Tavares Proença Júnior em de Exposição até ao próximo dia 25 de Setembro.
Desde jovem estudante, envolveu-se em a acções oposicionistas, tendo conhecido os cárceres do Aljube. Quanto ao ensino nas áreas da sua formação académica (Ciências Histórico-Geográficas), foi impedido de ensinar no ensino público e mesmo o diploma de ensino particular lhe foi cassado por decisão do Conselho de Ministros em 1949, só o conseguindo recuperar depois do 25 de Abril. Contudo, prosseguiu a sua actividade de magistério do conhecimento, dando explicações de português e francês, assegurando de forma autónoma e independente a sobrevivência económica. No início da década de sessenta, a família adquiriu a Papelaria Feijão, onde exerceu subtil influência, designadamente junto dos mais jovens, na divulgação de novas ideias e na defesa dos valores democráticos.
Genuinamente democrata, nunca pactuou com o regime opressivo, tendo sido uma voz corajosa da oposição na Beira Baixa, destacando-se como representante da candidatura do General Norton de Matos e na primeira linha do apoio ao General Humberto Delgado. Resistiu com coragem serena e, até bem-humorada, permanentemente vigiado pela Pide, sendo exemplo de firme dignidade. A aurora libertadora do 25 de Abril confirmou que vencem os valores da razão e da liberdade solidária como ideal. Contudo, o período seguinte de febre e agitação social, de pressa em se evidenciarem como democratas da parte de tantos que se tinham acomodado e beneficiado com o anterior regime, não o perturbou. Não se enalteceu nem se impôs, nada exigiu, continuou igual a si próprio como referência ética, chama viva dum ideal cuja coerência o sustentava, porque era o seu chão primeiro e definitivo dos valores essenciais que, existindo carácter e vontade firme, como sempre foram os seus, moldam e sublimam-se em bandeira solidária de referência comunitária. É desta forma sóbria, mas luminosa, que eu, jovem estudante na década de sessenta do século passado, guardo a grata memória do Dr. Luís Pinto Garcia.
No Verão de 1974, voltando a residir em Castelo Branco, participei na renovação pedagógica na Escola Industrial e Comercial onde leccionei e, também, na intensa militância no interior do Partido Socialista que dava os primeiros passos na sua organização e implantação na Beira Baixa. No final do Verão quente de 1975, pertencia ao Secretariado da Secção local do PS, quando chegou pela mão do Dr. Armindo Ramos, íntegro democrata, na altura Presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Castelo Branco, a indicação vinda de Lisboa para que fosse escolhido o nome de uma individualidade com vista a ser nomeado novo Governador Civil do distrito de Castelo Branco. Foi natural o nome do Dr. Luís Pinto Garcia já que a sua notável e contínua militância pela liberdade era reconhecida de forma consensual e confirmou-se a escolha. Em Outubro de 1975, iniciou as funções de Governador Civil de Castelo Branco, que exerceu, dialogando e unindo com isenção e total dedicação, até Fevereiro de 1980, quando o Governo da Aliança Democrática iniciou funções.
Em síntese, o Dr. Luís Pinto Garcia foi um cidadão coerente diante da sua própria e inviolável consciência e sentido de justiça. Um cidadão resistente de vontade inquebrantável. De resistência solitária, intransigente e sacrificial, como intelectual, investigador e referência moral. Contudo, na acção política e cultural, soube entrelaçar a sua firme vontade e as suas iniciativas com as de outros homens e mulheres livres do seu tempo, pugnando pela liberdade e pela solidariedade como alicerces de um destino colectivo digno e autêntico em que verdadeiramente acreditava. Desta disponibilidade e intervenção pública dão conta os significativos testemunhos de personalidades que lidaram com o homenageado, inseridos num livro/Catálogo, designadamente, de Vasco Lourenço, Dias de Carvalho, Marçal Grilo, António Salvado e Joaquim Morão entre outros.
Resgatar e celebrar a memória da sua vida e obra é o principal objectivo da Exposição, bem como Catálogo, visando enriquecer o presente com os exemplos fecundos do passado.

17/08/2022
 

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