Valter Lemos
GORBACHEV E O SEU LADO DA HISTÓRIA
Não deixa de ser curioso que a morte de Gorbachev ocorra no momento histórico de aparecimento de uma nova cortina entre a Rússia e a Europa. Mikhail Sergeevitch Gorbachev, de seu nome completo, foi o homem que mais contribuiu para o desaparecimento da famosa “cortina de ferro” com as suas “perestroika” e “glasnost” que abriram política, social e economicamente o bloco e a sociedade soviética e conduziram ao desmembramento do império soviético e ao fim pacífico da Guerra Fria da segunda metade do século XX, facto este que foi razão para o Prémio Nobel da Paz que lhe foi atribuído.
Naturalmente que os defensores do regime da então URSS e da Guerra Fria consideram Gorbachev um traidor. Desde logo quem defendia o regime soviético defendia também o império soviético. E a ação de Gorbachev criou as condições para um vasto número de países e nações retomassem a sua autonomia e independência face à URSS e à sua nação dominante, a Rússia. Muitos desses países que estavam sob controle soviético são hoje membros da União Europeia, o que leva alguns dos defensores do império soviético a dizer que, afinal, tudo isso só serviu para passarem de um lado para o outro. Talvez seja verdade, pelo menos em parte. Mas subsiste um facto definitivamente importante, pelo menos para os democratas – a integração no império soviético era forçada e a integração na UE é livre. Os povos da então Alemanha Oriental, da Polónia, da Hungria, etc., não escolheram livremente a sua integração no império soviético, mas a sua integração na UE é da sua iniciativa própria e da sua livre vontade.
E a prova de que a sua integração no bloco soviético era forçada, é bem demonstrada pelo facto de um vasto número, incluindo muitos que integravam a própria URSS e não só o bloco soviético, terem decidido pela sua independência na primeira oportunidade livre que tiveram.
A Rússia nação dominante do império soviético, nunca aceitou totalmente essa autodeterminação e por isso, Gorbachov não é querido na sua própria terra.
Putin é bem o rosto dessa postura, tendo como um dos eixos centrais da sua política, a recuperação para a esfera político-administrativa russa de alguns dos países que se tornaram independentes na era pós-soviética. Mas, uma vez mais, a estratégia usada é a da força e a da guerra, com a Ucrânia como expressão mais recente.
Face a esta situação de aparente recomposição de uma nova “cortina” e de uma nova “guerra fria” entre a Rússia e a Europa e EUA, alguns dirão que, afinal, a ação de Gorbachev não terá assim tanta importância. Mas, estão, obviamente errados. As mudanças no mundo provocadas pela sua ação vão muito para além das suas próprias intenções e são de grande profundidade. A vida de milhões e milhões de pessoas é bem diferente. Nenhum dos países e nações que se tornaram autónomos e independentes quer perder essa condição e integrar-se na Federação Russa, ainda que populações de origem russa, que vivam em alguns desses países, o possam compreensivelmente preferir. A esmagadora maioria dos países europeus que estavam integrados no bloco soviético aderiu ou quer aderir à UE.
Não há obviamente um lado certo da história. Cada observador vê consoante o seu ângulo de observação. Mas, do ponto de vista da liberdade, Gorbachov esteve, sem dúvida, do lado certo.