Edição nº 1769 - 30 de novembro de 2022

José Dias Pires
SER DESORDENADAMENTE HUMANO

Apenas nos habituamos aos lugares depois que todos eles se tenham habituado a nós. Quando revestimos os lugares de sombras, compreendemos as razões que nos levaram a habitá-los; a reconhecer a sua luz e a aprender que nenhum lugar tem cheiro antes de lhe percebermos a cor.
A minha sombra, cinzenta, habituou-se a habitar todos os lugares onde descansa o sol. Nela ilumino os meus ocasos sem ousar enfrentar o meio-dia olhos nos olhos ou a deixar descansar o pôr-do-sol no meu olhar. Pestanejo sempre para evitar o deslumbramento, porque não há maior acaso que a habituação aos deslumbramentos de cor que vivem, e morrem, quando se escondem na linha imaginária onde habita o ocaso.
O esplendor da manhã e as sombras da tarde são os portais dos lugares onde mora a noite que me leva a não andar longe de ser aquilo que não quero esquecer: os enormes lugares onde a minha infância se sentiu formiga ficaram tão menores à medida que cresci sem ela que, quando quero ficar, corro as cortinas e fecho os olhos por temer que os espaços se desabitem pela janela e me deixem vazio pois que, na verdade, a luz não resiste à sombra que não resiste à luz e os dias e as noites são amantes nessa contradição: sem controlo, na rua, descansam no consolo das janelas abertas.
Gosto do frio que me aconchega nos locais onde fui feliz. Nesses momentos, habitam-me arrepios de boas memórias. Todos, antes de caminharmos para o desconhecido da rua, vestimos as casas por dentro e assumimos o medo de nos habituarmos ao frio, quando nos desabitamos por fora e aprendemos que os caminhos conhecidos nos levam mais tempo e que as memórias são silvas e rosas, perfumes e espinhos onde nos perdemos, e nos prendemos, a caminhar.
Por isso, quando um fio de dia desafia um fio de luz a não entardecer, à noite as sombras são claras, e a noite do dia, sem o saber, é o dia da noite a crescer.
De manhã, a paciência que habita, suave, o veludo dos hábitos, conforta o tempo que passa, granulada, tranquila - é um tecido de pó que reconforta todos os regressos e arte depositada dos esquecimentos.
À tarde, quando as árvores se espreguiçam acontece o aconchego: sombra, cama, alimento, frescor ameno e saboroso.
Quando as árvores se espreguiçam é a nudez que se oferece: despida, folha, fruto, cálido gozo e refrigério, quase infância.
As máscaras da infância ajudam-nos a permanecer infantes?
Será que os sorrisos entre lágrimas são alegres incertezas que nos aquecem a alma: cada vez mais a eternidade que nos espreita, entre nuvens, à espera que as máscaras diurnas, usadas até à exaustão da noite, se transformem em pele e fiquem, para sempre, impressas como uma nódoa - negra?
Nem sempre, nem para sempre, somos a roupa que nos pomos. Uns, a desejar olhar a caixa mágica de plásticas ilusões orientadas — a conveniência.
Outros, a fingir que olham, como quem sai, na companhia de Pandora, a mascarar o olhar de preocupação - a ignorância.
Uns que, a desejar, apenas pedem; outros, por não fazer, a olhar para dentro, incapazes, sequer, de se olhar por dentro.
Depois há de chegar, a todos, o outono que oferece à terra a viuvez admirável das árvores e impõe ao corpo a viuvez irreparável das mãos, para nos tornar desordenadamente humanos.
Ainda bem.

30/11/2022
 

Em Agenda

 
29/05 a 12/10
Castanheira Retrospetiva Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco

Gala Troféu Gazeta Atletismo 2023

Castelo Branco nos Açores

Video