Edição nº 1795 - 31 de maio de 2023

José Dias Pires
4 - ADORAR ESPANTOSOS ESPANTOS

Ao Grande Hotel da Leitura, como era de esperar, os cágados e os caracóis foram os últimos a chegar. Vagarosos, pachorrentos, eram a imagem dos mais velozes lentos. O seu ar tranquilo era daqueles que até magoa. Sem perder mais tempo, levei-os para o Quarto da Lagoa.
Os cágados sabendo que, no inverno, o frio até trespassa, chegaram ao quarto e meteram-se logo na carapaça. Os caracois, mal chegaram ao quarto, recolheram a casa, os dois!
O Relógio de Dormir cumpriu o seu dever, mas já não havia ninguém ali que precisasse de adormecer.
Deixei três livros no Quarto da Lagoa. AS MARINHIGAS; OS GATAFUNHOS e A ELEVARANHA.
Hoje também chegou a minha vez de hibernar. Sim, também tenho um quarto, só para mim. Deixem que vos diga quais são OS SEGREDOS DEBAIXO DA MINHA ALMOFADA. O Relógio de Dormir era para ouvir logo a seguir, e ouvi, mas, como era de prever, não consegui adormecer.
Na verdade, QUEM NÃO DORME, LÊ. Assim sendo, tento hibernar e, ao mesmo tempo, pego nos meus livros, que guardei debaixo da almofada. e deixo-me estar. A ler, claro. E comecei pelo livro O PRIMEIRO MINUTO QUE PASSOU DO DIA DE HOJE.
Este é um livro muito engraçado. Parece que nos fala do passado, mas, se o lermos atentamente, está a falar-nos do presente.
O primeiro minuto do dia de hoje?
Reparem bem: o primeiro minuto de qualquer dia acontece à noite, quando está escuro, e sendo o começo é sempre o processo que dá origem ao próximo futuro.
E é assim em todo o mundo: o primeiro minuto sendo o passado do segundo, que entretanto já passou, era o futuro do último minuto do dia que acabou.
Este livro é um verdadeiro quebra-cabeça: fala-nos do passado e do futuro no momento em que o presente começa!
Gosto muito… gosto tanto…mas estou quase a dormitar. Que encanto, será que estou a sonhar?
Ao primeiro minuto do dia de hoje mal eu sabia que qualquer minuto que se lhe seguia ia ser sempre o primeiro do resto do dia.
Vou dormir.
Não consegui. Talvez a próxima leitura me traga o sono que a minha vontade tanto procura, é que está a chegar o primeiro minuto do dia de amanhã.
Já nem me importo de sonhar a preto e branco.
COMO SONHAR A CORES — Neste livro aprendi que quando as palavras andam perdidas e ficam a pairar no ar, o sono não as aconchega se não tiver cores para as explicar.
O sonho talvez o explique, se o sono vier. Pois o sono é como uma pena que cai devagar e se aproxima até poisar no chão como se fosse de algodão. E então, os olhos, fechados, começam, deliciados, a ver o que o dia ofereceu, ou a inventar o futuro que a noite, adormecida, nem sabe que prometeu já que depois voa, voa como um pedaço de papel onde dobrámos um passarinho.
Olha, parece que adormeci, devagarinho… Acho mesmo que sonhei. Ou será que não foi assim, e estou a sonhar acordado com o terceiro livro que escolhi para mim?
PARA ONDE VOA O PÁSSARO DE PAPEL — O livro começa assim: Ouviu-se um tiro! Ou será que foi uma explosão? A folha de papel caiu no chão. Afinal era apenas o barulho de um trovão. O vento, que lhe faz sempre companhia, agitou a folha. Dobrou-a, redobrou-a e deu-lhe forma de ave sem reparar que não estava vazia. Por entre as dobras, podiam ser lidas algumas palavras que até parecia terem sido de propósito escolhidas: pássaro, voo, manhã, nuvem, sorriso, romã, azul, partida, vontade, destino, sul, caminho, liberdade…
Para onde voa o pássaro de papel? Para onde o sonho me levar, se o sono não me contrariar. E contrariou. Continuo sem dormir e também sem hibernar. Acho que vou adormecer a sorrir depois de ler o livro que me falta.
HISTÓRIA DO SORRISO DOS HOMENS — Tudo começou no tempo dos dinossauros. Os homens, por vezes, sorriam com os olhos, ainda não falavam pelos cotovelos, mas, como hoje, quase sempre, metiam os pés pelas mãos. Bastava vê-los: acordavam cedo, animavam-se com um empurrão, tinham o coração ao pé da boca e caminhavam a medo porque, dos pés à cabeça, estavam com falta de imaginação. Por vezes, o medo tinha cheiro a felicidade, sabor a saudade, tinha um toque de ternura, que era o que mais se parecia com o amor, naquela altura. Mas de sorrisos, nada. Os gatos, que naquele tempo ainda não havia, eram substituídos pelos desacatos, uma espécie de dinossáurios mais pacatos que eram os seus animais de companhia. E sorrisos? Não havia.
Até que um dia, numa certa madrugada inesperada, o homem inventou a expressão tão desejada: adormecera, temeroso, sem vontade de dormir, numa muito escura noite de verão. A meio da noite acordou, vaidoso, com um pirilampo na mão. Com a noite a brilhar por causa daquele ponto luminoso, sentiu-se vaidoso, sentiu-se diferente. E, de repente, sentiu-se tão bem! Estava a sorrir. E eu? Eu também. Conto a mim mesmo este sonho, sorrio e estou, finalmente, a dormir e a adorar espantosos espantos.

31/05/2023
 

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