José Dias Pires
HOJE JÁ NÃO HÁ ALMAS GÉMEAS
Todas as coisas, mesmo o mais ínfimo grão de areia, são tridimensionais: são corpo, ideia e lugar (ou, pelo menos, a sombra que deixam nesse lugar).
O banco onde nos sentamos, o passeio onde se caminha e a lonjura que nos envolve, mas que tantos fingem ignorar apenas por mandriice, são corpos, ideias e lugares, e neles estão a serventia, o desfrutar e o justapor entre os usuários e o âmago de cada uma de todas estas coisas.
Podem ser ou parecer todas cinzentas porque nos esquecemos, ou tememos lembrar, das cores que lhes foram atribuídas sem favor, porque, mesmo invisíveis, elas existem dentro de si.
Podemos, para as diminuirmos, considerá-las inanimadas, objetos apenas, que não sentem, ou julgamos nós que não sentem: como uma árvore que não reclama o corte; um rio que não grita a injustiça de uma barragem; um mar que não chora a areia que o suja, quando ele lá chega para a purificar; ou um poente sempre designado pelo fim do dia quando é o começo de duas coisas: da noite do dia que ficou e do dia que acorda no lado em que o poente se esconde, para nascer todas as manhãs.
É por isso que eu amo as palavras difíceis, começadas por A: amanhecer, acariciar, amar; e tantos outros usam repetidamente, e por conveniência as palavras fáceis, começadas por O: obrigar, obedecer, obsequiar, obstinar, obstaculizar, opor.
Assim somos uns e outros.
Quando quero pensar, olho primeiro a distância. Depois, tento descer para descobrir o que está dentro de mim e paro, esqueço, deixo-me vogar numa escada em espiral e profunda que me leva à infância e às memórias que nunca proibi e que nunca me proibiram.
Outros temem o espaço e fogem sempre para o palmo mais próximo do deu nariz, que não tem coisas secretas, nem segredos guardados, nem sinceridade. Apenas abismos vencidos em passos de corrida, em orelhas tapadas por fones onde se escapam músicas doridas e desculpas esfarrapadas para não ouvir o que vos rodeia.
Há quem seja assim até perder a sua alma gémea.
Na verdade, hoje já não há almas gémeas. Estão obrigadas a não se encontrar, porque há quem tema que se fundam numa só e tenham, finalmente, significado e significante. Por isso caminham sempre em sentido oposto, isoladas, individuais, sozinhas, julgando-se imortais.
E, quando se encontram, morrem em êxtase nos braços uma da outra.
Hoje, quase todas as existências se obrigam (ou as obrigam) a ser desiguais.
Umas querem banquetes; outras satisfazem-se a fingir que matam a fome.
Umas sonham uma vida plena de mordomias; outras agradecem poder viver.
Umas querem que lhes respondam a todas as perguntas; outras gostariam de poder perguntar.
Umas querem aulas de canto; outras anseiam poder falar.
O caracol é dos poucos de nós que não perde a essência. Pelo contrário, é o arquétipo do coração das coisas: tem a sua forma; é dono do (seu) mundo; afirma, devagar, o direito de vagar; procura, também, o que só a terra lhe pode oferecer: a filiação perdida, e deixa no chão um traço viscoso e brilhante que indica o sentido linear de quem pretende descobrir-se no mar.
É lenta esta procura: de pedra em pedra até ver o mar das sete sereias e das sete ilhas de Ulisses. O mar musical que se quebra contra as rochas para as purificar e descobrir a canção irremediável das emoções repetidas.
O seu mar é o meu mar e é eterno, permanente, tem o segredo da infância inesquecível e todas as coisas que aprendemos a navegar com a imaginação.
E tem caracóis em demanda da terra, da sua fragilidade semelhante ao peso dos nossos castelos no ar que perdem, todos os outonos, a essência dos amores primaveris e se transformam em chuva de folhas secas.
No mar, todos tentam regressar à infância e, quase sempre, sem tempo, meio ou modo de a redescobrir.
Por aqui todas as coisas, mesmo o mais ínfimo grão de areia, são tridimensionais: são corpo, ideia e lugar (ou, pelo menos, a sombra que deixam nesse lugar).