Edição nº 1836 - 20 de março de 2024

Gonçalo Salvado
JULIO/SAUL DIAS UM CONVITE AO ÉDEN

A escritora Agustina Bessa-Luís caracterizou Julio/Saúl Dias como “Uma alma rara que vê o mundo como um lugar maravilhoso”. Esse convite, esse incitamento a que olhemos edénicamente para o mundo, ou melhor, que tentemos fazer dele um lugar possível de Paraíso, parece-me ser o maior legado e a mais relevante mensagem que subjaz ao que de mais genuíno e imortal existe na sua arte e na sua poesia.
Ainda que em muitos dos desenhos da “Série Poeta” os amantes gravitem e pairem sobre o mundo, como que desenraízados dele, esses mesmos amantes parecem dizer-nos que não é com um Além que importa sonhar; importa sim fazermos do nosso Aquém um sonho permanente, um lugar onde o Paraíso se corporize e vingue. Empresa difícil? Sempre votada ao fracasso do quimérico e do irrealizável? Aí estão a arte e a poesia de Julio/Saul Dias para contradizerem o nosso pessimismo.
Basta dois seres fascinados um pelo o outro, unidos pelo amor – ou pelo sonho dele e que incessantemente o procurem, o que vem dar ao mesmo -, e uma natureza em plena floração perfumada, para o Paraíso se concretizar e justificar toda uma existência. Ainda que por um só instante. Por uma tarde. Azul, claro. A tarde azul a que Julio/Saúl Dias se refere e alude. A que todos temos. Ou deviamos ansiar possuir. E que, ao viver-se, um dia, para sempre repercutirá em nossas memórias como uma música insilenciável e uma luz que nos acompanhá por todas as estradas fora, negando a degradação aparentemente irreversível causada pelo tempo e pela própria realidade, quando esta se nos apresenta e se nos afigura com laivos de sordidez e revestida de intrínseca fealdade. Parece pouco? Não creio. Pois como escreve Raúl Brandão já às portas da morte: “A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e nada mais”. Tudo o mais é acessório, no fim de contas. E deve ser remetido para o desvão das inutilidades e votado ao olvido.
É esse momento de ternura, imorredouro na alma do poeta e por si a cada instante evocado, que se reflete incessantemente em tudo o que de mais luminoso existe na arte e na poesia de Julio/Saúl dias.
Creio ser esse momento que habita, irradiando, o fulcro mais reiterado e contínuo da mensagem poética de Saúl Dias. Poesia de rememoração, pois, de uma tarde azul vivida ou idealizada que nunca se esgota, perenemente transfiguradora, que se reinventa a si mesma como a própria vida e que outorga sentido à existência e a consagra em perpétua e renovada alegria. Uma tarde que não finda, onde em seu âmago, brilha, álacre, em todo o seu esplendor, o sol do amor. E é com efeito o amor, como é por demais evidente, a temática predominante na obra de Julio/ Saúl dias.
Com a presente recolha de poemas de índole amorosa de Saúl Dias e de desenhos de Julio, no livro que hoje apresentamos, pretendemos tornar mais visíveis, depurando-as, as linhas de força da essencialidade desse mesmo amor, um amor nunca totalmente carnal, mas orientado para a transcendência, marca fundamental do lirismo português com raízes profundamente platónicas e bíblicas e de que em nossa opinião foram exemplos maiores João de Deus e Bernardo de Passos, este, hoje, injustamente esquecido, como tantos outros poetas, aliás, e que importa redescobrir.
No imaginário de Julio a mulher surge na sua pura e sã carnalidade e ao mesmo tempo transfigurando-se em aparição e epifania, dom supremo da própria vida, sinal de radiosa presença, sempre inalcançável. Demanda perene de um paraíso que nunca se perdeu, porque só no sonho verdadeiramente se revelou.
Concebemos este livro indo ao encontro do que nos parece ser a oculta narratividade latente no conjunto da obra poética de Julio/Saúl Dias que ele próprio definiu num poema e ao mesmo tempo realçando as personagens centrais de uma história de amor presente também no seu desenho, onde se evidenciam a apreensão do instante de encantamento original, a ruptura, o afastamento, a procura incessante, a diluição dos contornos entre o sonho e a realidade, o triunfo do amor sobre o esquecimento e a destruição e o eterno reflorescer do milagre do intensamente vivido que a tarde azul representa, como já afirmei anteriormente.
Não gostaria de terminar estas breves linhas sem referir o muito que me sinto grato e devedor à maravilhosa obra de Julio/Saúl Dias que aprendi a amar e admirar desde muito cedo impondo-se-me à primeira vista e leitura como uma das mais belas e perfeitas cristalizações do lirismo português em perfeita sintonia com o meu muito amado Cântico dos Cânticos. Nela, não poucas vezes, reconheci o meu rosto e o pulsar do meu coração.
Cada desenho de Julio da “Série Poeta” teve para mim o efeito duma revelação. Ainda hoje acredito que tudo o que pode haver de mais elevado em Arte está concentrado na singeleza do traço do desenho deste artista/poeta ímpar que marcou para todo o sempre a história do nosso lirismo. Oxalá este livro venha contribuir para lembrar uma vez mais o extraordinário e discreto percurso do grande criador que Julio/ Saúl Dias de modo tão autêntico soube ser, homenageado, hoje, na evocação do seu nascimento.
(Poeta)

20/03/2024
 

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