Edição nº 1838 - 3 de abril de 2024

Guilherme D'Oliveira Martins
NUNO JÚDICE (1949-2024) – POETA INESQUECÍVEL

Muito e pouco se disse sobre Nuno Júdice nestes dias desde que nos deixou. Muito, porque o poeta, ensaísta e romancista foi um praticante ativo da melhor literatura. A sua produção intelectual correspondeu a uma sucessão de contributos que foram dando aos seus leitores matéria-prima para continuarem a admirá-lo e a lê-lo. “Mas é assim o poema: construído devagar, / palavra a palavra, mesmo verso a verso, /até ao fim”… Era um artífice da palavra como poucos. Com uma grande serenidade, porque era alguém para quem a reflexão era um modo natural de viver, e foi-nos alimentando com diversas obras que corresponderam à afirmação de uma maturidade que se foi enriquecendo. Mas pouco se disse, uma vez que era de uma grande riqueza tudo quanto, ao longo da vida foi fazendo.
Acaba de sair de António Carlos Cortez “Um Canto na Espessura dos Textos – Leituras da Poesia de Nuno Júdice” (D. Quixote, 2024). É uma homenagem necessária e de grande utilidade para todos os leitores do poeta. Acompanhamos os enigmas que perduram, a letra do autor, a forma, o sentido do crítico, as fórmulas de uma luz inexplicável, as faces do poliedro, uma forma de atenção, as perguntas do nosso tempo, as fábulas, o mito da Europa, a memória, o tempo e a gramática, a pura inscrição do amor, a colheita dos silêncios. E assim vamos compreendendo-o melhor
Quando em 1972 escreveu A Noção de Poema definiu um percurso exigente de pensamento e de experiência. Eis por que razão a leitura da sua obra revela uma grande riqueza – desde o sólido conhecimento de um estudioso da literatura e da sua História até à tensão entre uma opção subjetiva em diálogo com os temas ficcionais, clássicos e românticos. “Podíamos saber um pouco mais / da morte. Mas não seria isso que nos faria / ter vontade de morrer mais / depressa // Podíamos saber um pouco mais / da vida. Talvez não precisássemos de viver / tanto, quando só o que é preciso é saber / que temos de viver // Podíamos saber um pouco mais / do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar / de amar ao saber exatamente o que é o amor, ou / amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada / sabemos do amor” (Pedro Lembrando Inês, 2001).
Num ecletismo enriquecido pela versatilidade dos temas, desde as raízes ao romantismo, sem esquecer a modernidade, Nuno Júdice transporta-nos a uma literatura viva, sem receitas, que torna a sua leitura apetecível e aberta ao mundo. Por isso, tornou-se um autor dos mais traduzidos e que levaram mais longe a internacionalização da cultura portuguesa. Obteve, assim, os mais reconhecidos Prémios, bem representativos de uma perspetiva universalista da nossa literatura contemporânea. Fez deste modo jus a uma cultura nascida da poesia dos trovadores, em que a lírica se associa aos temas clássicos, num enriquecimento próprio do caleidoscópio que muda interminavelmente ou do cadinho, onde se misturam influências várias. Orfeu e Eurídice encontram Pedro Inês, o tempo ultrapassa fronteiras, “a poesia é teatro”. “Construo o pensamento em pedaços: cada / ideia que ponho em cima da mesa, é uma parte do / que penso; e ao ver como cada fragmento se / torna um todo, volto a parti-lo, para evitar / conclusões”. Eis a permanente necessidade de caminhar em percursos novos, de ter avanços e recuos, de ir da tradição à mudança. “Como é mais fácil deixar que as coisas / não mudem, sermos o que sempre fomos, mudamos / apenas dentro de nós próprios?”.
E fica-me na memória muitos anos de encontros e de lembranças, como a recordação da sua casa antiga, num almoço algarvio, com o Nuno e Manuela, em que ele dizia: “posso dar-me ao luxo de esquecer esse outro mundo das férias e ir com a regularidade possível para reencontrar esse cenário da infância e adolescência, no tempo em que as portas se abriam e só se fechavam à noite, sem que ninguém que não fosse convidado entrasse na casa, construída em 1902, e em que se concilia uma arquitetura andaluza, voltada para o pátio, e um interior de tetos altos com paredes pintadas a escaiola e chão de azulejos hidráulicos, com as salas forradas a madeira que resistiu ao tempo”. E via com satisfação que “há finalmente uma preocupação em preservar o que pode ser salvo e em dar vida ao que, há poucos anos, eram ruínas, desde as antigas fábricas de conserva há muito desativadas até conventos ou edifícios históricos condenados ao abandono”. Ah, uma terra tão rica de encontros, de mercadores e piratas, de pescadores e artistas. “Ventos estáveis, gaivotas sobre / os molhes. A rebentação fixa-se / no ouvido. O som da água / nas fissuras da rocha, os gritos / que se perdem nas praias. // Barcos ancorados na floresta”.
E nessas recordações, vem à baila o Centro Nacional de Cultural com Sophia de Melo Breyner e um dos primeiros poemas do Nuno no Diário de Lisboa Juvenil, em 1967, em que fala do padre Glória, seu tio-bisavô, ao lado de Estácio da Veiga, a salvar da ruína várias igrejas, na inesgotável atenção ao património cultural que torna viva a paisagem e põe o diálogo com a natureza como fonte inesgotável da criação literária. Fica bem presente a amizade, e o constante trabalho com a palavra, numa afinação sempre inacabada, que foi o seu ofício até ao fim. Trabalhador incansável, amador da vida, do tempo, do Sol e da Lua, da Terra e do Mar, e de quem amava e sofria…
Termino citando António Carlos Cortez: “o estilo de Júdice arrasta uma ideia permanente de irónica heterodoxia que se constrói desse ‘apogeu da gramática’ e da ‘interioridade evocativa da voz milenar’ que, desde A Noção de Poema até ao seu último livro, faz com que o narrativo e o lírico sejam sinónimos de reinvenção permanente duma dramaticidade contável – não cantabile”.

03/04/2024
 

Em Agenda

 
07/03 a 31/05
Memórias e Vivências do SentirMuseu Municipal de Penamacor
12/04 a 24/05
Florestas entre TraçosGaleria Castra Leuca Arte Contemporânea, Castelo Branco
14/04 a 31/05
Profissões de todos os temposJunta de Freguesia de Oleiros Amieira

Gala Troféu Gazeta Atletismo 2023

Castelo Branco nos Açores

Video