Joaquim Bispo
A PAIXÃO DE TONÍ
Aqueles tempos não eram bíblicos, mas os fariseus e os simples viviam juntos nas mesmas cidades, nas mesmas aldeias, nas mesmas ruas, como em todos os tempos. Não era a riqueza que fazia uns soberbos e néscios, nem a pobreza que fazia outros humildes e um pouco mais sensatos.
A década de 50 atirou muitos jornaleiros para as cidades, a fugirem de uma agricultura em decadência. Digamos que foi esta a razão que fez Gregório e Rosinda, com pouco tempo de casados, deixarem a casa humilde de pedra à vista numa aldeia do interior e rumarem a um bairro popular de Lisboa. Naquela, não havia muito para pôr na panela de ferro, habitante permanente e sossegada da pedra do lar, a um canto da casa; nesta também não, embora as paredes estivessem pintadas e a cozinha só tivesse panelas de alumínio e esmalte.
Entre biscates incertos e desilusões de cidade, Gregório foi-se deixando ficar pelos bancos das tabernas mais tempo do que o recomendável. Rosinda, igualmente frustrada entre limpezas de assoalhadas e reprimendas de patroas já esquecidas, elas próprias, das origens humildes, terá ido sendo atraída para maneiras de viver mais fáceis. Quem pode atirar a primeira pedra?
Uma coisa leva a outra; o casamento não se aguentou. Sem grandes ralhos nem dramas. A chama partira, a vida familiar tornara-se outra coisa, mais mesquinha, mais sórdida, mais alienada. Gregório foi-se acomodando à precariedade das ocupações, desde que fosse dando para beber um copito.
Um dia, Rosinda resolveu voltar para a terra. Talvez a pensar numa vida mais modesta, mas menos constrangedora, talvez apenas a fugir do que já não queria. Quem sabe? Talvez com um pequeno pé-de-meia que daria para se aguentar algum tempo. Na aldeia tinha família. Alguma coisa se havia de arranjar.
Poucos dias depois, pela tardinha, Toní Alfazema, um janota de Lisboa apresentou-se-lhe à porta. A exigir-lhe que voltasse com ele para Lisboa. Que a Madalena também tinha vindo e estava à espera. Além disso, Toní insistia que queria o cordão de ouro que ela lhe roubara. E ameaçava-a.
Teria ou não teria, ela negava. Ouvindo passos na rua, gritou. Por sorte, era um seu irmão que vinha do olival. Não era momento nem juiz para avaliar verdades, propriedades, nem razões. Um intruso ameaçava a sua irmã e isso só tinha uma resposta.
Toní trepou como pôde umas escadinhas de madeira e encontrou-se encurralado num sótão que nem dava para se pôr de pé. Sem mais saída, arrancou umas telhas e escapou para o ar livre. Não foi longe. O alarido crescia na rua. Naquele tempo, as ruas das aldeias ainda tinham habitantes. Em pouco tempo se juntou muito povo, que deu caça ao estranho. Estava alapado num quintal próximo, junto a um galinheiro.
Os primeiros que o agarraram não lhe fizeram mal. Só queriam esclarecer as coisas. Se o tipo fugia, por alguma coisa seria. Rapidamente, a vozearia identificava o fugitivo como o malandro que desencaminhara a Rosinda. Seria um galifão destruidor de matrimónios ou um reles chulo que se agradava mais do dinheiro que as mulheres podiam gerar do que do seu corpo? Um ou outro, eram igualmente podridões andantes, tão longe dos valores sagrados da aldeia. Ou assim se apregoava.
- Está um carro de praça ao pé da cruz. Não o deixem fugir!
Então, uns cuspiam-lhe na cara e davam-lhe bofetadas, e outros punhadas nas costas e na barriga. E gozavam:
- Adivinha quem é que te deu.
- Ela roubou-me um cordão - esbracejava o saco de pancada.
O cortejo atravessava lentamente as ruas sombrias da terra.
As mulheres também se chegavam e gritavam:
- Malandro! Velhaco! Vadio! Corrécio!
Os homens subiam a parada, com muitas e pesadas palavras de índole sexualizada, que por norma censuravam aos filhos. E iam “molhando a sopa”. Um deles aplicou-lhe um murro bem dado do lado esquerdo.
Toní foi ao chão pela primeira vez.
(Continua...)