Edição nº 1902 - 2 de julho de 2025

Joaquim Bispo
A REALIDADE

(Continuação)

Como que a confirmar a realidade, Pedro passa a mão pelos cabelos e pela face macia da mulher, olha-a no azul dos olhos e beija-a nos lábios, longamente. O miúdo, que brincava com o carrinho, mas sem perder pitada do ambiente, vem a correr meter-se entre eles, para não ficar de fora na distribuição de carícias. Os três estão abraçados e a rir com a brincadeira, quando soa uma campainha. Ele pega no telefone, mas ninguém responde.
- Deve ser a porta.
Ela vai abrir, mas volta logo.
- Não está ninguém à porta…
Ele desliga o televisor, mas a campainha continua a tocar sem interrupção. Entreolham-se todos, com olhares um pouco assustados, sem trocarem palavra. O miúdo corre a abrigar-se nos braços da mãe. Olham para todos os cantos da sala, para o teto... O som da campainha continua, mete-se pelos ouvidos adentro, parecendo vir de todos os lados ao mesmo tempo.

Pedro começa a tomar consciência das cores escuras e pesadas. Depois as formas aparecem-lhe com mais nitidez. Os seus olhos abrem-se definitivamente e com eles percorre o aposento: roupa amarrotada numa cadeira; um poster de revista na parede; uma mesa com um prato sujo em cima; do outro lado da cama, um banco com um cinzeiro e um despertador.
O barulho do despertador é já insuportável. Pedro trava-o com um murro. Fica a olhar para ele e para tudo o que ele significa: trabalho, submissão a horários, salário de miséria…
- Seis e meia. Porcaria de vida!
Senta-se na cama, encostado à parede. O leito é um colchão de espuma com um saco-cama em vez de lençóis. Acende um cigarro. Acodem-lhe ao pensamento imagens do sonho que acaba de viver. Detém-se nos sofás confortáveis, na estante cheia de livros, nos quadros, no menino adorável, na mulher deliciosa…
- Não querias mais nada: boa casa, um bom emprego e uma mulher linda!
Um sorriso amargo aflora-lhe a boca. Acaricia a ponta do travesseiro, sonhador, pensativo.
- Sonhos!
Os seus olhos percorrem o local onde poderia estar deitada uma mulher. «É difícil viver sem mulher.» Mais difícil e amargo ainda lhe foi viver com uma mulher em desarmonia. «Que fazer?» Volta a olhar a miséria monótona do quarto. Não é preciso beliscar-se. Esta realidade conhece ele bem.
Ou não? Afinal, que crédito pode dar ao que, de todas as vezes, lhe pareceu realidade? Aceitar esta porquê, se ela parece tão desagradável? «Não quero esta trampa! Qualquer das outras é preferível.» Acabado o cigarro, estende-se outra vez, relaxado.
- Que se lixe!
Umas três horas depois, sonha que voa por cima do parque da cidade. Controla tão bem o seu corpo que bastam poucos movimentos dos pés para se elevar, e pequenas inclinações do tronco para orientar a trajetória. Acaba por poisar num enorme relvado junto a uma mata. Desta sai um urso que se prepara para o atacar. Pedro pega num pau e bate-lhe com força na cabeça. O animal tem a cara do seu patrão, que lhe aponta o indicador:
- Estás despedido!

Pedro salta da cama com um forte sentimento de angústia. Está outra vez atrasado. Muito. Lava os olhos à pressa, veste-se num ápice e sai do quarto a correr. Lá fora, a realidade parece saída de um quadro de Bosch.
«Socorro! Quem me acorda?»

02/07/2025
 

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