José Dias Pires
A ESPÚRIA COMUNA DOS HOMENS
Inadvertidamente, a vida transformou-me num cronista de ignorâncias.
Como as vossas, as minhas ignorâncias vivem repartidas entre boas vontades, melhores intenções e movimentos sombrios dos que apenas veem nos outros instrumentos descartáveis dos seus intentos.
Os meus ouvidos, imagino que também os vossos, estão muito cansados de ouvir as repetidas histórias dos antigos sobre as aventuras e desventuras dos seus antepassados, e os meus olhos, não serão os únicos, estão extenuados de tanto procurar vislumbrar as variadas hipóteses sobre o destino dos vindouros.
Tento imaginar o que me espera mais à frente: uma espécie de território federativo no que era um espaço destinado a ser do tamanho do mundo, mas ficou confinado, por conveniência, falta de alternativa e de jeito, a uma área de carroça coletiva e de carroceiros singulares, fundada num concílio, depois de alguma cavalheiresca disputa, algures entre uma desatualizada república e uma artificial monarquia, nuns idos primaveris do século passado.
De desilusão em desilusão, de contradição em contradição e repleta de momentos de instabilidade política acompanhada de uma vaidosa ineficácia coletiva, uma combinação contranatura entre democracia, autocracia e caciquismo permitiu que se chegasse ao que hoje parecemos (infelizmente) ser: uma Asnocracia — a Espúria Comuna dos Homens: a divisão de um território em duas regiões em tudo desiguais: o litoral e o interior; o eu e o nós, os singulares e o plural.
Quem não gostaria de fazer parte dos singulares num mundo plural?
Ser uma árvore de Natal entre as árvores de uma floresta inexpugnável, e não estar sujeita aos caprichos de um madeireiro protegido por mandantes sem caráter ou à maldade de um incendiário compulsivo.
Ser uma andorinha amenizadora do inverno entre as andorinhas de um bando primaveril, e poder nidificar num beiral protegido da inveja gélida dos que nada fazem pelos outros em qualquer estação.
Ser uma ovelha desafinada no coro repetitivo do rebanho, capaz de enfrentar qualquer outra, olhos nos olhos, sem medo de ser desmentida, mas com vontade de contraditório.
Ser uma caneta de tinta permanente entre tinteiros de tinta efémera, e preencher, sem ditado, textos motivados por corações quentes nas páginas em branco.
Ser um camelo de oásis na cáfila dos atravessadores dos desertos, e preferir uma concha de água ou uma folha de hortelã à miragem dos grãos do oiro fácil dos interesses.
Ser uma rã vegetariana num lago pejado de pirilampos, e permitir que a inocência ilumine todas as noites tempestuosas.
Ser uma harpa solista numa orquestra de grafonolas tagarelas, e deixar vogar, tranquilas, as notas das mais complicadas partituras.
Ser o pé descalço de criança entre as botas cardadas de um exército, a caminhar, irrequieto, para o futuro.
Para se fazer parte dos singulares num mundo plural, é preciso conseguir escrever (bem) com as palavras, com os gestos e com os olhos. E só consegue escrever bem quem souber ler (bem).
Para se conseguir pertencer aos singulares num mundo plural, é fundamental saber ler os outros, o mundo, a vida e ler-se a si mesmo. E só consegue ler quem não teme aprender.
Para se poder pertencer aos singulares num mundo plural, é determinante saber aprender em permanência para preencher, sempre de forma incompleta, a ignorância.
Para se merecer ser um dos singulares num mundo plural, é obrigatório ser humilde. A humildade é o mais particular dos desafios para qualquer dos que desejam fazer parte dos singulares num mundo plural.
Um mundo plural: eis o verdadeiro desafio e condição imprescindível para a singularidade: saber dos outros para saber de nós, e aceitá-los para que nos aceitem, e instigá-los para que nos instiguem, e promovê-los para que nos promovam, e ajudá-los para que nos ajudem. O mundo plural não precisa de umbigos preenchidos de individualismos comezinhos e interesseiros disfarçados de cidadania.
Há, no meio de tantos (ir)responsáveis, quem utilize a estapafúrdia desculpa do “ser-se assim, pronto” como elemento primordial do “estado a que isto chegou”.
Será verdade? Gostava que não fosse.