Antonieta Garcia
A mentira tem perna curta...
Ensinava um provérbio com barbas: “a mentira tem perna curta”. No primeiro quartel do século XXI, ou mudamos o tempo do verbo – do presente para o passado -, ou colocamos esta sentença de saber de experiência feito no rol de antiguidades. Alongou-se demais o corpo da falsidade.
Bem sei que já António Vieira dizia: “Muito tempo há que a mentira se tem posto em pés de verdade, ficando a verdade sem pés e com dobradas forças a mentira; e é força que, sustentando-se em pés alheios, ande no mundo a mentira muito de cavalo… (Padre António Vieira, in As Sete Propriedades da Alma).
Reconheça-se que há épocas mais infelizes do que outras, mas tristemente neste nosso tempo não destoam as palavras de Vieira. Mente-se tanto e tão bem!
A mentira tem uma feição despudorada. Tanto diz, como desdiz. Usa uma mola secreta e sem honra nem dignidade, afunda crenças, alija responsabilidades, emaranha acontecimentos, distorce dados, põe-nos à nora.
Se nos dizem que os impostos não vão aumentar, que nos vão restituir sobretaxas, que os cortes nas pensões estão excluídos… que pensa o comum dos mortais? Já vimos medidas repudiadas, qualificadas como disparates, verem a luz do dia em versão até mais assustadora do que era expectável… É o FMI que não quer? Então a Troika não partiu? Continuamos tutelados? Quem manda neste país? E o desemprego, como é? Baixou? Que critérios foram usados na contagem? Consideraram os muitos que emigraram? Quantos são os que, por terem partido, já não estão inscritos no Centro de Emprego e Formação Profissional? E os múltiplos estagiários com trabalho a prazo? Ainda assim, na melhor das hipóteses, a percentagem de desempregados terá descido aos valores do tempo em que a crise se iniciou. São boas notícias? Contas feitas o que melhorou depois de tantos sacrifícios? Cada qual conta a sua narrativa. Afirmam uma coisa e o seu contrário e alguém mente com os dentes todos que tem na boca.
Teixeira de Pascoaes que viveu também um tempo crítico anunciou e bem: “É na faculdade de mentir, que caracteriza a maior parte dos homens atuais, que se baseia a civilização moderna”. (…) Acrescenta: “a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes… De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente, todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras. Conclui: “A mentira reina sobre o mundo!” (Teixeira de Pascoaes, in A Saudade e o Saudosismo). Lamentavelmente tinha / tem razão.
Por exemplo: ouvimos certificar que uma instituição bancária estava segura. Não passou um mês e caiu… Noutro domínio, lê-se num Diário que colesterol e fast-food andam de mãos dadas; outro estudo publicado no dia seguinte, confirma “cientificamente” que não há qualquer ligação entre uma e outra coisa. Beber leite é essencial, clamam uns; entre os mamíferos, só o homem continua a beber leite depois da infância, e é perfeitamente dispensável, asseveram um ou dois dias depois… Ao anátema sobre a manteiga perigosíssima relativamente a qualquer réplica vegetal, segue-se uma defesa destemperada da gordura animal porque os aditivos conservantes de outras pastas para barrar o pão, se não matam, moem muito… Quem se entende?
A palavra simulada e manipulada com saber engravatado tornou-se abstrata, obscura, enigmática. Encontramo-la a cada pé de passada. E desconfiamos muito. Por mim, todas as vezes que recebo de uma seguradora, de uma instituição bancária, de uma empresa… um papel enooooorme, como explicação e garantia de uma qualquer aquisição… perco-me naquelas informações redigidas em prosa tão bárbara que assassina qualquer interesse pela leitura. Não consigo levá-la ao fim, mesmo que saiba que estão em causa euros que voam cada vez mais asinhas. Como faço? Habitualmente, socorro-me de um(a) funcionário(a) a quem peço que me “traduza” ou resuma o texto vazado em carateres milimétricos. Faz de conta que as instruções são somenos e enganam qualquer pessoa de boa-fé. É nesses excertos que constam as desvantagens, os “ses”, os danos… em suma, as informações úteis para o caso de alguma coisa não correr bem. São uma espécie de efeitos secundários das bulas dos medicamentos, os tais que devem ser conhecidos e podem garantir a saúde… ou mais doença. Enfermos ficaremos, porém, se nos atrevemos a ler as notícias que povoam as moderníssimas comunicações/redes sociais que chegam das mais variadas vozes; vulgarmente a ambiguidade e a mentira contraíram ali matrimónio… até que a morte as separe. Nas entrelinhas há pasto para trapaças, enredos e reboliços… temperados com aldrabice q.b.
A mentira tem perna curta? Tenham dó! Neste querido mês de agosto, com um calor tórrido, as cabeças fervem mais e dizem coisas, contam coisas… Que a santa paciência nos valha, sobretudo até 4 de outubro…