Antonieta Garcia
Uma calças para três!
Teria seis, sete anos. Andava na primeira classe. Acompanhava-me uma prima com o triplo da idade, a ouvir-me ler uma lição que rezava: “Emilita é muito esperta e desembaraçada, e gosta de ajudar a mãe.- Minha mãe: já sei varrer a cozinha, arrumar as cadeiras e limpar o pó. Deixe-me por hoje a mesa para o jantar.- Está bem, minha filha. Quando fores grande, hás-de ser boa dona de casa.”
Admirei a menina do fundo do coração. Não me contive:
- Eu também!
Cheia de brios repeti frases sempre aplaudidas, jurando a pés juntos que havia de ser uma dona de casa perfeita… outra Emilita.
- Parece que é parva! Atalhou a minha prima, desaprovando o elogio incondicional à heroína da narrativa. Não entendi. Com as lágrimas prontas a saltar, olhei-a estupefacta!
Então não era bonito saber fazer tudo e querer ser boa dona de casa?
- Acabaste? Então, vai limpar o pó, depois pões a mesa, arrumas a casa…
Como por milagre, com as tarefas à frente, o encanto daquela menina exemplar esmaeceu perigosamente…
Verdade é que a Emilita nunca mais foi a mesma. Sobretudo porque a dita criatura enchia de malfeitorias e remorso o gosto de miúdas traquinas mais dadas a brincadeiras: se fosses como a Emilita… se fosse a Emilita já… a Emilita não gosta de rua, a Emilita é bem mandada… Protagonista de sermões e sermões, porque não se lhe apontava um desvio, nem coisíssima nenhuma… Haveria alguém assim? Só aquela, a do livro…
Mais tarde percebi: Emilita era a simulação de mulher modelo, sem direito a ser menina, a alimentar preconceitos sobre as tarefas femininas. Dizia Salazar, em Discursos – 1935 -: …o trabalho da mulher fora de casa desagrega este, separa os membros da família, torna-os um pouco estranhos uns aos outros. Desaparece a vida em comum, sofre a obra educativa das crianças, diminui o número destas; e com o mau ou impossível funcionamento da economia doméstica, no arranque da casa, no preparo da alimentação, no vestuário, verifica-se uma perda importante, raro materialmente recompensada pelo salário recebido.
Nascer mulher significava ter um espaço: a casa; ser esposa, mãe e educadora. Tudo o mais era um luxo. O Estado Novo criara mesmo o Estatuto do Trabalho Nacional regulamentador das situações dos serviços, e das profissões femininas que deviam ser conformes às “exigências da moral, da defesa física, da maternidade, da vida doméstica, da educação e do bem social.” A Emilita era o começo da aprendizagem do papel da mulher…
A sua missão era educar “dignos filhos da pátria”, ou seja, “…dar a Deus bons cristãos, à sociedade cidadãos úteis, à família filhos ternos e pais exemplares”.
O lema era a mulher no lar; teoricamente, está bem de ver. Muitas trabalhavam fora de casa por necessidade. Operárias, trabalhadoras rurais, mulheres-a-dias… acrescentavam magras moedas aos exíguos salários dos maridos.
Contavam-se muitas conformadas e outras rebeldes que contestavam os desígnios patriarcais secularmente apreciados.
Enraivecia-se Fernando Castro Pires de Lima: “há, hoje em dia, determinadas exceções femininas que querem à viva força transformar o belo sexo no feio sexo, à custa de todas as emancipações possíveis e imaginárias. Estamos a ver, repito, o olhar feroz e iracundo da sufragista, essa aberração feminina a gritar a necessidade de a mulher se emancipar pelo assalto a determinadas profissões que, pela sua brutalidade e energia, têm sido e muito justamente, exclusivas do homem. Não, não queirais fazer da mulher um ser mecânico e insensível»; prossegue: «Sim, meninas, que me estais a escutar, só há para vós uma emancipação digna e legítima: o casamento. Fora disso só existem atitudes equívocas e pouco dignificantes»; (…) «ela só tem o louvável e bondoso interesse de agradar totalmente ao homem».
Esgrimiam todos os argumentos. A fraqueza física, a necessidade de tutela, a “natureza” feminina, justificavam juízos vexatórios, medidas que a conservassem no lar redentor, iluminado pela fantasia. O valor moral de um país estava nas mãos da mulher, não devendo, por isso, abraçar qualquer ambição política. O combate cívico dos homens era político, público, assegurava o funcionamento das instituições; o da mulher era espiritual e realizado em espaço privado.
A gestão da casa era, assim, a angelical tarefa que permitia poupar, poupar, poupar... “A mulher emprega no seu pequeno mundo familiar, os mesmos princípios da economia, da moderação no gasto e de aproveitamento de pequenas coisas que já notamos como segredo da indústria – restos de comida, aparas de hortaliça, pratos arranjados com outros que não serviam já, farrapos que servem para um tapete, pedaços de pano para qualquer coisa e roupa transformada, como fazia aquela mãe que mandava a um filho umas calças novas feitas de umas velhas do pai e pedia-lhe que lhas devolvesse, depois de usadas para fazer outras para um irmão mais pequeno.” Eram umas calças para três, como a sardinha que dava para alimentar o mesmo número.