Carlos Semedo
Luz do Instante
Este mês vou escrever sobre um projecto colectivo. Quero chamar a vossa atenção para as diversas camadas deste pulsar conjunto. Luz do Instante é, antes de qualquer outra coisa, um espaço de Encontro e como tal é assumido como plataforma visível e simbólica do encontro de olhares. Não será por acaso que se trata de fotografia, essa predadora da nossa atenção. Nos últimos anos, em todo o mundo, tornou-se uma das mais banalizadas formas de comunicação. Nunca acreditei muito na fórmula “uma imagem vale mais que mil palavras”, pois a assertividade deste senso comum depende muito da qualidade das palavras ou, obviamente, das fotos. Uma coisa é certa: nunca se viu tanta gente a produzir imagens. É de tal forma que na maior parte das vezes, os humanos parecem mais interessados em registar o momento do que em vivê-lo. Ou, dito com outro alcance, a vivência do agora implica o troféu simbolizado pela imagem, plasmado no caos digital com máquina ou telemóvel.
Este impacto é sentido permanentemente e muitas vezes é dramático e perturbador. Por exemplo, num espectáculo de dança ou de teatro, as máquinas de fotografar, os telemóveis e até os tablets [sabiam que é proibido fotografar ou filmar qualquer espectáculo sem autorização?] são um elemento altamente perturbador da relação espectador coisa vista, ouvida ou sentida. Estes artefactos fantásticos aniquilam qualquer possibilidade de uma relação plena e efectiva.
Uma das formas de lutar contra este ritmo alucinante de consumo de imagens, é precisamente através do diálogo sobre a imagem. A verbalização que consegue ultrapassar as fórmulas mais básicas para denominar o referente é sempre subjectiva, mas implica um primeiro gesto: o ver para além do olhar. Essa atitude cultiva-se e desenvolve-se.
No fundo o Luz do Instante – Encontros de Fotografia de Castelo Branco tem este labor como cenário primordial. Quatro exposições muito distintas, fruto da organização colectiva e do impulso da autarquia. Este carácter diverso de cada uma delas, obriga o público a procurar formas de diálogo distintas. As fotografias dos anos sessenta de António Duarte Costa [expostas no Museu Francisco Tavares Proença Júnior] são registos de um repórter que procurava retratar acontecimentos e pessoas em situações concretas. O olhar terá de ser, no mínimo, um pouco diferente quando se deambula pela excelente montagem de Duarte Belo, no seu regresso às paisagens da Beira Baixa, que ocupa uma das salas dos antigos CTT. Mais ainda, no caso do itinerário visual e poético de João Roiz de Castelo Branco, construído a partir de um roteiro fornecido pelo também poeta António Salvado – um notável trabalho de concisão. Na exposição colectiva que se encontra patente na antiga fábrica Sicofato, no Bairro do Cansado, a profusão de estilos, técnicas, a discrepância de qualidade das fotografias expostas, aproximar-se-á um pouco mais do caos dos sítios da internet ou das redes sociais. As dezenas de participantes elegeram as suas fotos apenas com uma condição: que as mesmas tenham sido feitas no concelho. Esta premissa, torna-a numa espécie de mosaico de alguma da produção fotográfica dos que habitam ou vivem este território.
E é precisamente aqui que os vários significados da ideia de colectivo explodem com estrondo [muitas das paredes e janelas estão destruídas], no bom sentido, na minha opinião. A Sicofato foi uma unidade fabril onde trabalharam centenas de pessoas e só o facto de aquele espaço abrir ao público, se constitui como um convite para o exercício da memória, dos afectos e das tensões que naturalmente despertam. Expor o seu estado actual, confrontá-lo com as memórias e apresentar o seu futuro [ali será construída a Fábrica da Criatividade] é um processo de impacto colectivo. Toca uma comunidade e potencia a sua consciência identitária. Convidar dezenas de produtores de imagens para expor naquele sítio, é mais uma camada do sentido colectivo do processo. São, pelo menos, três gerações que partilham o mesmo espaço, que assistem à contaminação da sua produção com a dos outros e, em simultâneo, tentam compreender de que forma a estética, a técnica e a poética resistem à luta desigual com o esqueleto do edifício [sobretudo no piso 0]. O público, na multiplicidade das motivações que o leva a visitar esta exposição, também se torna uma camada quase caleidoscópica, com diferentes ritmos de visita, sentido e discurso crítico, capacidade de diálogo interior com os elementos arquitetónicos e as imagens. Tudo isto torna este Luz do Instante um marco na relação dos albicastrenses com a fotografia. Marco no duplo sentido de ponto de referência e fronteira. O que está do lado de lá da mesma, começa desta forma, com muita gente envolvida e sem a omnipresença do culto do eu, tão próprio da cultura selfie. E, significativamente, este mistério do que aí vem desta exposição é, também ele, colectivo.