Maria de Lurdes Gouveia Barata
O olhar para ver e sentir
No âmbito das Comemorações dos 500 anos da morte do poeta João Roiz de Castelo Branco, a que a Câmara Municipal de Castelo Branco tem dado particular atenção, integrou-se, entre publicações a propósito do evento, a de um livro de António Salvado: O OLHAR DO VER / O VER DO OLHAR - SEGUIDO DE CANTARES DE AMIGO / CANTARES DE AMOR. Farei um breve apontamento sobre a primeira parte deste livro.
Podemos dizer que é a mulher o objecto do canto, numa continuada relação eu-tu, com o uso contínuo dos verbos na segunda pessoa do singular, um eu poeta que se dirige a uma figura feminina amada, sobretudo objecto de Desejo, tecendo-se nas palavras a limalha da imaginação que enreda uma esperança de sentimento recíproco, conquanto seja uma esperança minada de interrogações e dúvidas. A mulher desejada torna-se a Beleza, uma Afrodite, uma Laura de Petrarca ou uma Beatriz de Dante, que foram amadas e eternizadas pela palavra dos poetas. Entre eu e tu desencadeia-se um jogo sempre postado pelo eu que imagina sentimentos e intenções de um tu e é esse sonho jogado que se torna aglutinador do desejo que leva à posse imaginada, não conseguida, apenas fremindo nas malhas da ilusão. É, no entanto, este imaginar que congrega a força em que se digladia o desejo e a posse, uma posse que nunca é a da alma - «ter-te ali sem possuir / o que tens no pensamento (…)» [poema 3, 2º est.,p.16] – uma posse alimentada, consubstanciada no olhar do ver, tornando-se concreta na imaginação que lhe traz o ver do olhar. Temos o OLHAR que será do VER, se pusermos um objecto de atenção nesse olhar (é o ver com olhos de ver, porque podemos olhar sem ver) e o OLHAR DO VER traz consequência: um resultado expressivo da paixão e do desejo, que edifica uma estória de amar.
Se a imaginação não possui o pensamento daquela que ama, consegue a posse fantasiada do corpo, da carne, revestindo-se de erotismo toda uma cenografia do amor físico. Das várias partes do corpo feminino entra uma força voluptuosa no OLHAR DO VER: «Provocante atrevida / caminhando logravas / estar a ser despida / por quem te vislumbrava.» [poema 25, p.30]. O corpo é esbelteza de grácil figura [p. 15], esplendor - «(…) / porque aos meus olhos, de carne / tu és em tudo o esplendor / e se versejo cantando-te / com débeis fracas palavras / junto ao meu palpo o teu corpo.» [poema 10, p. 22]. A boca torna-se numa suspeita de prazer - «(…) / o presumir os teus lábios / quando o meu anelo vasto / absorve o teu corpo inteiro.» [poema 2, p.15]. Os lábios vermelhos [p.37] ou de tom rubro [p.39] são incitantes de acção dentro de uma simbologia de princípio da vida, são ainda lábios a sorrirem [poema 42, p. 41] ou a tremerem [poema 54, p.49] com intensidade de apelo erótico: «E os teus lábios a tremerem / exclamam: “quanto maior / é também a minha sede 7 nos teus a sugarem postos”.». Igualmente as mãos completam trechos de amor- «(…) e as tuas mãos enlaçadas / onde, livres, querem pôr-se?« [poema 18, p.26] - «(…) minha mão tocando a tua (…)» [poema 42, p.41].
Voltemos ao OLHAR. A visão da amada, num OLHAR DO VER, «(…) põe os meus olhos a pulsar. (…)» [poema 6, p.18], um mirar-te [poema 9, p.21], um olhar demorado [poema 49, p.47], um olhar cruzado [poema 63, p.54], um olhar de surpresa do eu - «Foi um olhar de surpresa / aquele com que te vi / e os meus olhos mais tremeram / e vibraram de alegria.» [poema 71, p.61] - tudo corrobora um efeito, que é o VER DO OLHAR. No VER congrega-se todo o Desejo.
Entretece-se nesta rede erótica o movimento, marcante presença de atracção do eu perante o corpo a requebrar-se [poema 6, p.18], acrescentando-se verbos como menear [poema 1, p.15], balancear [poema 8, p.21], numa desenvolta passante [poema 69, p.59]. E tudo entra num ritmo cadenciado que os próprios versos septassílabos reforçam.
O jogo entre o desejo e a possível posse, a presença e a ausência, que é exílio, mas presença na lembrança - «(…) e bem longe o longe embora / tu permaneces presente.» [poema 72, p.61] da mulher amada, instalam o amor permanente.
A imaginação desencadeia frémitos de amor, celebrando o próprio amor. Deseja um amor secreto para o querer, porque o segredo acicata o desejo envolto no mistério dum quase proibir uma intrusão: «(…) o nosso amor é o selo / duma fonte de águas vivas / a correr com tal sigilo / que só nós vamos bebê-las / e no seu frescor fruí-las.» [poema 16, p.25]. Também o segredo incendeia mais a paixão. «Confio que não divulgues / o que entre nós vai mandando: / é no recato que – julgo - / um quente amor mais se inflama.» [poema 19, p.27].
O eu poético revela-se pelo olhar, mas revela ainda quem se olha através dum OLHAR DO VER, um VER que tem como efeito a embriaguez do desejo de amar.