Antonieta Garcia
Velhas fotos...
Foi uma foto antiga, descoberta por acaso, no fundo de uma gaveta de um armário, que me guiou até este instante. Em tons sépia, perfilam-se quatro gerações com o fato a cote; olham para a câmara três peitos inchados que não despegam da barriga, uns quantos olhares vivos, outros moídos e inquietos… sorridentes todos, com vontade ou sem ela. Às crianças, sentadas no chão, incomoda-as o sol; com as mãos tapam os olhos aflitos; do fundo dos anos ouço ralhar porque não se lhes vê a cara:
- Tira a mão! Vá ri-te…
As fotos eram um luxo e era preciso ficar bem no retrato, certificar a alegria, a felicidade e tudo!
Nesta foto passeiam momentos da idade da inocência, um percurso por caminhos velhos, e muita gente que o tempo vergou. Identifico, meio escondido, o tio Zé Esteves excelente contador de histórias. Alto, magro, bigode farfalhudo e torcido nas pontas, era homem de palavra fascinante. Que bem contava as coisas! Sabia tudo o que havia para saber dos trilhos e das gentes. Personagens boas e más desfilavam e cada um que ouvia imaginava a feição, o porte, a altura… em suma desenhava a que melhor se coadunava com a narrativa. Muitas eram reais: pastores, camponeses, ganhões… bruxas, bentos, condes, doutores… O cenário era ali, na aldeia… ou numa próxima.
Não faltavam bichos a encantar o conto. Ensinava a ver o sorriso do lagarto, as manhas da raposa para roubar galinhas, a descodificar o cacarejo das pitas, a distinguir os cantos do melro, do pintassilgo, a entender a sagacidade do pardal…
Protagonista era o lobo. Dono do medo, desde meninos aprendíamos que a sua aproximação punha os cabelos em pé… Os uivos adensavam mais os receios.
Esfomeados tudo lhes servia…
Contava: “O António, quando era rapazote, assoldadou-se com o Senhor Conde. para guardar as cabras: era o pastor. Com o senhor Conde estava também como criado outro cachopo que andava com as vacas: era o ganhão.
Num sábado, os dois combinaram ir, à noite, a um balho (baile), numa aldeia que ficava acerca de uma légua do sítio onde eles moravam.
Entretanto, o feitor ordena ao ganhão que, nesse dia, trouxesse um carro de lenha; chegou alta noite a casa.
O pastor, veio antes; mal entrou, pediu à patroa que lhe desse a ceia; no fim, disse que ia andando para o balho. O ganhão teve de cear mais tarde, mas foi ter com o pastor.
Meteu-se ao caminho arriba. Um lobo surgiu diante dele. Com medo, saltou para a regueira do outro lado; o lobo aparece-lhe de novo à frente e assim iam: o ganhão a desviar-se do lobo e o lobo a meter-se na frente dele. A dada altura, o rapaz, já com os cabelos todos eriçados, chegou próximo de uma azinheira e trepou para cima dela.
O lobo, quando o viu lá no ciminho, começou a uivar, a uivar…Daí a pouco já eram cinco lobos… Enraivecidos por não poderem comer o homem, deitaram-se a morder no primeiro que uivara… Depois, outro começou a esgaravatar ao toro da azinheira, depois outro e outro, mas como a não podiam deitar abaixo, deitaram-se, à espera que descesse o ganhão.
Ao romper da manhã, os lobos agora um, logo outro, foram-se embora. O ganhão quando se viu livre, desceu da azinheira arreganhado e foi-se mas é para quinta onde morava… Já não quis saber do balho.”
Final feliz, como convém. Mas foi uma desilusão a ida ao Jardim Zoológico. Pertinho dos lobos que é dos cabelos em pé? Que é dos uivos? Só na serra, só na serra é que os lobos se comportavam de jeito a eriçarem-se os cabelos… Os do Zoo, não tinham graça nenhuma os lobos do Jardim; nem para a história do Capuchinho Vermelho serviam…
O tio Zé Esteves, meio oculto na fotografia velha, com sorriso maroto encantava-nos com os contos que inventava.
Adorava o Carnaval; era uma festa alegre, para colocar máscaras, inverter papéis e rir!
No Entrudo Trapalhão da Beira, a diversão era simples: os homens vestiam-se de mulher (e vice-versa), os novos de velhos, os ricos de pobres… Época de críticas implícitas ou explícitas, o Entrudo trazia para a rua arremedos de liberdade, muita irreverência, e malícia q.b.
Lembro que o Tio Zé Esteves dizia, então, com humor, textos de Julgamentos, Mortes e Testamentos de Galos, Bacalhaus e de outros bichos metafóricos… Alguns perderam-se; outros vi-os renascer com a democracia; mas se o lápis azul é peça de museu, sua excelência a Censura resiste como pode e a deixam. Não se cortam excertos, mas adoçam-se admoestações habituadas a desfilar em passadeira vermelha; causam poucos danos, escusam sorrisos amarelos ou tipo fecho-éclair. Que se exibam transgressões, mas com maneiras, que se exponham pecados e pecadilhos com desculpa à arreata, que se clamem direitos sem cartazes e gritos, que se zombe sim, mas sem ofender ninguém.
Já com os de fora pode afiar-se mais a língua e a unhita…
Falta o Tio Zé Esteves para contar textos de hoje com graça, imaginação e saber. Está escondidito na fotografia envelhecida. Sorri como os outros, mas trocista e revela regras fotográficas, quase que se encobriu. Ai as fotos velhas como pastoreiam histórias de vidas de gente de alma ao léu… Gosto tanto de as olhar devagarinho…