10 de fevereiro de 2016

Antonieta Garcia
Velhas fotos...

Foi uma foto antiga, descoberta por acaso, no fundo de uma gaveta de um armário, que me guiou até este instante. Em tons sépia, perfilam-se quatro gerações com o fato a cote; olham para a câmara três peitos inchados que não despegam da barriga, uns quantos olhares vivos, outros moídos e inquietos… sorridentes todos, com vontade ou sem ela. Às crianças, sentadas no chão, incomoda-as o sol; com as mãos tapam os olhos aflitos; do fundo dos anos ouço ralhar porque não se lhes vê a cara:
- Tira a mão! Vá ri-te…
As fotos eram um luxo e era preciso ficar bem no retrato, certificar a alegria, a felicidade e tudo!
Nesta foto passeiam momentos da idade da inocência, um percurso por caminhos velhos, e muita gente que o tempo vergou. Identifico, meio escondido, o tio Zé Esteves excelente contador de histórias. Alto, magro, bigode farfalhudo e torcido nas pontas, era homem de palavra fascinante. Que bem contava as coisas! Sabia tudo o que havia para saber dos trilhos e das gentes. Personagens boas e más desfilavam e cada um que ouvia imaginava a feição, o porte, a altura… em suma desenhava a que melhor se coadunava com a narrativa. Muitas eram reais: pastores, camponeses, ganhões… bruxas, bentos, condes, doutores… O cenário era ali, na aldeia… ou numa próxima.
Não faltavam bichos a encantar o conto. Ensinava a ver o sorriso do lagarto, as manhas da raposa para roubar galinhas, a descodificar o cacarejo das pitas, a distinguir os cantos do melro, do pintassilgo, a entender a sagacidade do pardal…
Protagonista era o lobo. Dono do medo, desde meninos aprendíamos que a sua aproximação punha os cabelos em pé… Os uivos adensavam mais os receios.
Esfomeados tudo lhes servia…
Contava: “O António, quando era rapazote, assoldadou-se com o Senhor Conde. para guardar as cabras: era o pastor. Com o senhor Conde estava também como criado outro cachopo que andava com as vacas: era o ganhão.
Num sábado, os dois combinaram ir, à noite, a um balho (baile), numa aldeia que ficava acerca de uma légua do sítio onde eles moravam.
Entretanto, o feitor ordena ao ganhão que, nesse dia, trouxesse um carro de lenha; chegou alta noite a casa.
O pastor, veio antes; mal entrou, pediu à patroa que lhe desse a ceia; no fim, disse que ia andando para o balho. O ganhão teve de cear mais tarde, mas foi ter com o pastor.
Meteu-se ao caminho arriba. Um lobo surgiu diante dele. Com medo, saltou para a regueira do outro lado; o lobo aparece-lhe de novo à frente e assim iam: o ganhão a desviar-se do lobo e o lobo a meter-se na frente dele. A dada altura, o rapaz, já com os cabelos todos eriçados, chegou próximo de uma azinheira e trepou para cima dela.
O lobo, quando o viu lá no ciminho, começou a uivar, a uivar…Daí a pouco já eram cinco lobos… Enraivecidos por não poderem comer o homem, deitaram-se a morder no primeiro que uivara… Depois, outro começou a esgaravatar ao toro da azinheira, depois outro e outro, mas como a não podiam deitar abaixo, deitaram-se, à espera que descesse o ganhão.
Ao romper da manhã, os lobos agora um, logo outro, foram-se embora. O ganhão quando se viu livre, desceu da azinheira arreganhado e foi-se mas é para quinta onde morava… Já não quis saber do balho.”
Final feliz, como convém. Mas foi uma desilusão a ida ao Jardim Zoológico. Pertinho dos lobos que é dos cabelos em pé? Que é dos uivos? Só na serra, só na serra é que os lobos se comportavam de jeito a eriçarem-se os cabelos… Os do Zoo, não tinham graça nenhuma os lobos do Jardim; nem para a história do Capuchinho Vermelho serviam…
O tio Zé Esteves, meio oculto na fotografia velha, com sorriso maroto encantava-nos com os contos que inventava.
Adorava o Carnaval; era uma festa alegre, para colocar máscaras, inverter papéis e rir!
No Entrudo Trapalhão da Beira, a diversão era simples: os homens vestiam-se de mulher (e vice-versa), os novos de velhos, os ricos de pobres… Época de críticas implícitas ou explícitas, o Entrudo trazia para a rua arremedos de liberdade, muita irreverência, e malícia q.b.
Lembro que o Tio Zé Esteves dizia, então, com humor, textos de Julgamentos, Mortes e Testamentos de Galos, Bacalhaus e de outros bichos metafóricos… Alguns perderam-se; outros vi-os renascer com a democracia; mas se o lápis azul é peça de museu, sua excelência a Censura resiste como pode e a deixam. Não se cortam excertos, mas adoçam-se admoestações habituadas a desfilar em passadeira vermelha; causam poucos danos, escusam sorrisos amarelos ou tipo fecho-éclair. Que se exibam transgressões, mas com maneiras, que se exponham pecados e pecadilhos com desculpa à arreata, que se clamem direitos sem cartazes e gritos, que se zombe sim, mas sem ofender ninguém.
Já com os de fora pode afiar-se mais a língua e a unhita…
Falta o Tio Zé Esteves para contar textos de hoje com graça, imaginação e saber. Está escondidito na fotografia envelhecida. Sorri como os outros, mas trocista e revela regras fotográficas, quase que se encobriu. Ai as fotos velhas como pastoreiam histórias de vidas de gente de alma ao léu… Gosto tanto de as olhar devagarinho…

10/02/2016
 

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