21 de dezembro de 2016

Maria de Lurdes Gouveia Barata
DIGRESSÃO DE NATAL

Chega um Natal, mais um Natal e vozeiam as mesmas palavras e resplandecem as mesmas luzes e perdem-se as pessoas no labirinto das corridas e espanejam-se entre brilhos de fitas natalícias as modas, os perfumes, os brinquedos, apelando e empurrando para dentro das lojas à espera dum lampejo de ideia para mais uma prenda… mas volta o mesmo cansaço da procura, da barafunda, dos empurrões nos aglomerados das gentes. Frituras, doçuras de bolos, tudo misturado com algumas amarguras de bolsas ou de insatisfação. Já que vieram à baila coisas duras, há ainda as agruras que implantam receios e medos nos corações diante das notícias do mundo que os telejornais despejam dentro das casas.
Porém, luzes, movimento e cor, tudo se torna apoteótico no exterior ao espírito. Pequenos momentos no intervalo dos cansaços quase dão a paz do recolhimento do Menino nascido em manjedoura com o céu por abóbada pejada de estrelas verdadeiras, cintilantes. Momentos que são de evocação dum Natal longínquo que reporta à infância. Havia o mágico acreditar no Menino que descia pela chaminé a encher sapatinhos cuidadosamente postados para receber a dádiva. Devia ser realizadora de algum sonho que se tecera na congeminação da carta, porque havia uma carta pensada, escrita com cuidado, com a língua espreitando da boca para ajudar… A caligrafia apurada, para que o Menino não tivesse dificuldades de leitura. Havia também a excitação da espera da manhã seguinte, o sono nunca mais vinha… E foi numa dessas noites de espera sem o sono vir que me neguei a acreditar, teimava em não acreditar que ouvira o pai e a mãe cochichando junto da chaminé onde estavam os sapatinhos, teimava em não acreditar que ouvira o som dum brinquedo caindo no chão. Quis acreditar, sim, que fora um sonho a dormir na noite da espera. Tinha de imaginar que o Menino Jesus continuava a descer pela chaminé.
Lembro também a noite das filhoses na aldeia, a fritar no caldeirão do azeite, talhadas no joelho, sobre um pano, pelo meu avô, viradas e reviradas pela minha avó (o azeite tinha olhos que eram estrelas na nebulosa da espuma), que as retirava com um grande garfo e as punha a escorrer antes de as colocar num grande cesto e as polvilhar com açúcar de neve. Bom, bom era na altura do boneco (bonecos, porque viriam o meu irmão e os meus primos). A massa final destinava-se a isso: uma bola para a cabeça, o rectângulo grosso do tronco, quatro rolos de massa esticados, dois braços e duas pernas. Porque era tão bonito? Porque sabia muito melhor que as filhoses normalmente talhadas?
O Natal, quer queiramos, quer não, acaba por vestir magicamente os dias, porque também se impregna de recordações doces, porque fala do espírito da paz e da união, mesmo que não postas em prática, como herança de Bondade e de um Deus Menino que se anunciava salvador dos homens. É nesse espírito que os momentos de recolhimento, intervalo das tais corridas confusas, trazem o pensamento solidário com os que estão sós, mais sós nesta época de beijos e abraços de Boas-festas, com os países sem paz, de que ressalta o horror de Alepo, com os refugiados de guerra, com os do sem nada que se chama pobre ceia. Consolam, de qualquer modo, os movimentos solidários, que não fazem o Natal todos os dias (outra frase gasta e debilitada), porque sozinhos não podem. O Natal enche-se de palavras tristes como solidão e desigualdade daqueles que nem conseguem imaginar as paredes dos salões dourados de Trump (logo fui lembrar-me deste nome…) murado nas interrogações preocupantes que trouxe.
Mas volto à doçura do Natal do frio, contemplativo de estrelas de prata fria, das noites de caramelo que o ar gelado talha. E logo me fui lembrar do caramelo, das poças de água cobertas pelo vidro fininho do gelo… Encanto meu de pequenita na aldeia. A manhã, sobretudo se era de sol a espreitar, trazia os brilhos desses espelhos nas charcas. A garotada pegava-lhes cuidadosamente, não fosse quebrar-se aquele cristal oferecido. E eu espreitava as coisas através da transparência e tinha uma pena do vidrinho a desfazer-se nos meus dedos engadanhados!

21/12/2016
 

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