Carlos Semedo
O SALÃO VERMELHO
A transformação de Arvid Falk ao longo das quase quatrocentas páginas na versão portuguesa de O Salão Vermelho, de August Strindberg, é um fenomenal alerta relativamente à natureza humana. Embora o enquadramento seja o da Suécia do final do séc. XIX, a argúcia, acutilância e inteligência de Strindberg tornam este livro universal, tanto no sentido territorial como temporal. Acabo de o ler e tenho a avassaladora sensação de que o devia ter feito muito mais cedo na minha vida, tal a forma como aquelas personagens e relacionamentos se podem trans- portar para os nossos dias numa poderosa lição sobre a hipocrisia.
O alerta surge logo na capa desta edição, através de uma citação de Edvard Brandes: Não existe leitor que, ao acabar de ler este livro, não se erga com vontade de combater a hipocrisia. Este aviso não tem nada de exagerado e os capítulos iniciais introduzem o leitor a algumas das personagens que vão cruzar-se de uma forma ou outra com Arvid Falk.
O protagonista percorre um duro e instrutivo caminho, que o fará contactar com as diversas dimensões da sociedade da época, em Estocolmo. Os jornais da época, veículos da mais evidente manipulação dos leitores e a construção da imagem de um artista, que lhe permite o sucesso ou o empurra para o ostracismo, quase sempre sem qualquer relação com a qualidade do seu trabalho, são dois dos alvos da escrita de Strindberg. Logo no início somos confrontados com a magnitude da máquina burocrata da chamada função pública, que tem como um dos vértices os seus diversos departamentos. Alguns exemplos: Directorado-Geral das Pensões dos Funcionários Públicos; Colegiado da Destilação da Aguardente; Colegiado para o Pagamento dos Honorários dos Funcionários Públicos. A divertida ironia de Strindberg leva-nos até à estratificação de funções, que se aproxima do delírio funcional: “Depois de termos deambulado pelas divisões atribuídas aos Copistas, Tabeliães, Escriturários, ao Auditor e ao Secretário do Auditor, ao Supervisor e ao Secretário do Supervisor, ao Fiscal de Contas, ao Guarda-livros, ao Arquivista e ao Bibliotecário, ao Contabilista, ao Tesoureiro, ao Estafeta, ao Protonotário, ao Secretário do Protocolo, ao Actuário, ao Escrivão, ao Secretário Assistente, ao Subsecretário e ao Secretário Principal, parámos, por fim, diante de uma porta onde estava inscrita, em letras douradas, a palavra Presidente. “
A dada altura, uma personagem propõe-se criar uma empresa de seguros marítimos. A forma como este objectivo será alcançado é sugestiva: “Dinheiro! O que tem que ver o dinheiro com abrir uma firma? As pessoas que fazem seguro dos seus bens terão de pagar, não é? É, claro que sim! É suposto que paguemos por eles? É claro que não! Os seus pré-mios providenciarão o dinheiro.” No momento da escolha dos subscritores, outro momento lapidar: “Eles subscre- vem, mas não têm de pagar nada e recebem os dividendos em troca de comparecerem em reuniões e comerem jantares de directores.” E se alguma coisa correr mal? “Nesse caso, entramos em liquidação.” Vários paralelis-mos poderiam ser aqui feitos, mas deixo-os ao critério e gosto do leitor.
Da política às questões de género, da frivolidade à caridade, do absurdo burocrático à manipulação pelos jornais, até à imanente hipocrisia, O Salão Vermelho é um livro obrigatório para que nos questionemos sobre a forma como vivemos e nos relacionamos com os outros.