Fernando Serra - feserra@sapo.pt
“ONDE ESTÁ O SAPATEIRO?”
Soalheira. Virada ao sol por decreto milenar da Natureza, uma cortina de penumbra a percorreu no dia em que um projecto agigantado em má hora se materializou, vindo a dar naquilo que deu. A montanha parira um rato. Porque nem sempre a obra dá sequência digna à intenção.
Um grupo de elementos de uma autarquia não muito longínqua terá apostado na preservação das raízes da sua terra perpetuando a imagem daquele que configura o ícone mais representativo da então aldeia, em tempos idos - o sapateiro. Gente felizmente ainda bem viva testemunha a existência, há muitas décadas, de dezenas de sapateiros na Soalheira, todos eles exímios executantes do calçado artesanal, por medida. Muitos de longe vinham na demanda dos sapatos domingueiros, e muitos outros exibiam o pé descalço, para as medidas de um par de botas grosseiras, resistentes aos gelos e às lamas da invernia. Retalhos da memória colectiva quase lendários, que persistem indiferentes à voragem sublimadora do tempo, assegurando a matriz identitária de um povo.
Foi, então, que esse grupo de autarcas progrediu na ideia de perpetuar a existência feita tradição do sapateiro da Soalheira, como símbolo de uma indústria nada e desenvolvida sem apoios, nem prebendas, numa pequena aldeia beirã, que haveria, por isso, de criar fama, ser fonte de sustento e transpor o nome da terra para longe dos seus contornos geográficos.
Assim surgiu a “homenagem ao sapateiro”, configurada numa efígie esculpida em granito. Mas, se em boa hora o projecto foi concebido, não terá sido em tão boa hora que foi executado. Na verdade, um Largo (o de Santo António), cenário de eventos de cariz social de toda a estirpe, onde confluem artérias várias (uma delas a estrada municipal), razões que o identificam como espaço nobre da vila, põe a nu a fragilidade do “monumento” (?) no que ele tem de insignificância volumétrica e carência de símbolos da “arte” - onde está o avental de couro? Onde pára o martelo a castigar a sola? E a sovela? E as meias-luvas? E a cadeirinha baixa de sentar? Será que uma enfezada fôrma de calçado (único pormenor identificador), escondida e quase invisível numa das mãos, terá bastado ao aprendiz de escultor para imprimir na pedra o perfil do “sapateiro”?!
Empoleirado num calhau de granito polido, um homenzinho minúsculo (mais se assemelhando a um órfãozinho abandonado), de boné (quem trabalhava sob telha não usava boné...), de ar abatido, exalando uma timidez de comover, não passa de uma provocante aberração artística aos olhos e à sensibilidade de quem passa. E de quem passou. E de quem há-de passar. É o insólito em toda a pujança a roçar o limiar da anedota... Será por isso que quem olha, ri?...
De facto, uma obra que teria por objectivo perpetuar condignamente a memória de uma actividade, hoje em extinção, que ajudou a escrever, também ela, a História da Soalheira na sua vertente cultural, descambou numa “coisa” por identificar, insalubre, triste, raquítica, feia, de mau gosto.
E analisando essa “coisa triste e de mau gosto” noutra latitude, apetece perguntar se não configurará ela, mais uma vez, o velho rebuçado atirado da varanda feudal à arraia miúda, em dias de Páscoa...
A Soalheira nos seus direitos de preservação patrimonial merecia mais. A população, que na sua ingenuidade tudo consente e cala, merecia mais. Os vindouros, que não hão-de entender nada, mereciam mais. Mas, esses, de certeza, não perdoarão. Duvidamos que haja quem disso duvide.
P S: Este texto foi redigido com base na opinião unânime dos naturais da freguesia e de quem simplesmente a habita, cuja inércia e alheamento impediram sempre a denúncia pública do seu desencanto, como resposta ao que lhes fizeram. Foi pena.
Castelo Branco, 10/06/2016