Carlos Semedo
A SENDA ESTREITA PARA O NORTE PROFUNDO
Já há alguns anos que me interesso pelo mal. É ele intrínseco ao homem e durante a vida conseguimos domesticá-lo aqui e ali? Ou nascemos bons e é a vida que nos vai afastando desse atributo original? Mas, afinal, de que é feito o mal? Será que o conseguimos caracterizar, sem relativizar, sem o desculpar ou sem o esconder? Nesta incessante procura, entre outras coisas, tenho lido muito do que se escreveu sobre o Holocausto e sobre a guerra nos Balcãs (anos 90 do séc. XX).
Há uns tempos, fui alertado para um livro do autor Richard Flanagan, que me poderia interessar, pois aproximava-se desta inquietação. O título, na tradução portuguesa de Miguel Serras Pereira, é A Senda Estreita para o Norte Profundo.
Acabei de o ler há pouco. Foram três dias de grande intensidade. É um texto duro e arrebatador. Uma história de terror durante a Segunda Guerra Mundial: a construção de uma linha de caminho de ferro, por presos australianos (e de outras proveniências), pelo meio da selva, sem recursos materiais dignos para tal e com um prazo irrealista, é o centro de uma narrativa que me prendeu do princípio ao fim. Gostei particularmente da forma como o autor nos prepara para o corpo central dedicado ao martírio no campo de prisioneiros, dando-nos a conhecer os pormenores da vida da personagem principal, Dorrigo Evans, as suas relações com duas mulheres, Ella e Amy,, introduzindo-nos ao pensamento e acção dos oficiais japoneses, abrindo um pouco a cortina sobre alguns colegas (camaradas, veremos mais à frente numa cena docemente adolescente, quando partem os vidros de um restaurante, para libertar peixes de um aquário, em honra de um soldado morto, no campo). Em epígrafe, o autor coloca, de Paul Celan “Mãe, eles escrevem poemas”. Ao longo do livro, senti como faz todo o sentido esta escolha.
O início da narrativa é duro, mas contrabalançado com as diversas histórias, que nos vão deixando conhecer de forma mais profunda as personagens. Quando o autor nos leva a entrar - literalmente - no inferno do dia-a-dia daqueles autênticos escravos ao serviço de um desidério louco do imperador, eu, como leitor, estava totalmente tomado pelas personagens, o que tornou particularmente dolorosa a leitura. Depois, já mais perto do final, Flanagan apresenta-nos uma espécie de “coda”, na qual se vai alongando de forma hábil. Ao virar de cada página, perguntava-me: quando vai aparecer Amy. E sim, Amy cruza-se com Dorrigo, num desencontro épico. Épico porque está carregado de histórias, omissões, silêncios, mentiras e uma vertigem que resistiu ao quase inominável. Será amor? Ou amor é o que acontece a Ella e aos filhos, no capítulo de um terrível incêndio, que quase desintegra a família?
Um texto perturbador, carregado da potência condensadora do Haiku. Afinal Issa é, também ele, citado:
Um mundo de orvalho
e dentro de cada gota
um mundo em guerra.
No final desta leitura, mais interrogações do que respostas. Alguns japoneses envolvidos acreditam que não tinham outra hipótese, pois uma ordem do imperador não podia ser contrariada e havia a cadeia de comando (lembram-se da polémica Arendt/Eichmann?). Por outro lado, estavam convictos que os australianos presos eram fracos, pois se não o fossem tinham preferido a morte à rendição. Entre os presos australianos, embora o espírito solidário fosse dominante, o instinto negativo esteve presente em muitas peripécias da narrativa. A natureza humana é fascinante, contudo quando o coronel Kota recita Basho, antes de decapitar mais um preso australiano ou chinês, algo de profundamente inquietante se instala dentro de nós.