11 de janeiro de 2017

Antonieta Garcia
O Natal às avessas…

Ruas e casas da Beira são, nesta época, cenários de Natal. Há muitas luzinhas, em espaços com toques e tiques de velhas fidalguias. Mas o pisca-pisca aturdido também entra e sai pelas janelas, em becos acanhados e pobres, por portas mancas, vidros meio fuscos, paredes embarrigadas ou engelhadas… O tremeluzir é ainda mais eufórico nas vitrinas das lojas, ou na iluminação das ruas centrais. É a celebração do Natal! Valem: as árvores de imitação -algumas criativas - feitas de tudo o que há à mão; o Pai Natal democrático, magro ou gordo - depende de quem está disponível -, com um saquito de simpatia e, quem sabe?, outras coisas de valia; somam-lhe pistas de gelo (que já rivalizam em número com feiras medievais), cuja dimensão depende das verbas para as festas, muitos jogos, animação de rua, circo, duendes que pintam rostos das crianças, prendas e mais prendas… Não se resiste a ofertas, mesmo que, algumas cheguem com o estatuto de lixo adiado. Porém, uma lembrançazinha, ainda que, assim miudinha, fica bem e os sacos multiplicam-se em volta da árvore de Natal… Afinal, o festejo pede um ambiente colorido, de alegria…
Esta é a ficção essencial, moderna da Festa do Nascimento do Menino. Vai-se ofuscando a tradicional Missa do Galo, o bicho que anuncia a luz e a saúda cantando; reduz-se o ritual do madeiro a arder, no adro da Igreja, para aquecer o pequenino, o franciscano presépio…
E da narrativa maior? Lembram-se? Incluía a ida ao musgo, pela manhãzinha, acompanhados de conselheiras mais velhas:
- Esse não! É verdinho, mas não vês que tem muita terra? Sai todo aos bocadinhos… Quanto mais largo, melhor… Bocados grandes! Com esse, não fica bonito… Desfaz-se e suja tudo…
Falava quem sabia. Naquelas manhãs, enganidos de frio, mãos engadanhadas até doer, era um regalo entrar em casa, pô-las em concha a abraçar o quentinho da chávena com a bebida quente para animar a alma e prevenir constipações…
Depois, desembrulhavam-se as figuras. Apareciam sempre traumas: a cabeça do pastor voara, o anjo perdera uma asa, uma ovelha ficara sem pernas…
- Não têm cuidado nenhum, a arrumar isto… Assim nunca hão de ter um presépio de jeito!!!
Espalhado o musgo, cada imagem tinha o seu lugar; a prata de chocolates ou de maços de tabaco servia para desenhar o rio obrigatório; a farinha era a neve, o algodão em rama pendurava-se na cabana para o mesmo efeito; a construção exigia jeito para armar uns pauzitos que deviam manter-se de pé até ao dia de Reis… Não podia faltar uma lâmpada forrada com papel celofane vermelho, ripas em redor, a fogueira-faz-de-conta que aquecia os que visitavam, esperavam e louvavam a vinda do Menino.
- Esta não fica bem aqui! Pomos os pastores e quem traz prendas, juntinhos; perto do rio, ficam as lavadeiras… Os Reis Magos, com ouro, incenso e mirra, chegam no dia seis… andam atrás de todos. O Anjo pede o sítio mais alto…
Repetia-se anualmente a história; as cartas com os pedidos eram endereçadas ao Menino Jesus, que trazia as prendas, conforme o comportamento e o dinheiro de cada um. Deixava-as no sapatinho colocado na chaminé. Na hora de explicar que eram os pais e a família que ofereciam presentes, o texto estava prontinho a sair:
- É o Menino que dá trabalho, o dinheiro para podermos comprar…
A animação de rua faziam-na os grupos que iam de porta em porta cantar as Janeiras, como queria Zeca Afonso:
“Vamos cantar as janeiras / Por esses quintais adentro vamos / Às raparigas solteiras // (…) Muita neve cai na serra / só se lembra dos caminhos velhos / quem tem saudades da terra//. Quem tem a candeia acesa / Rabanadas pão e vinho novo / Matava a fome à pobreza//.”
Vaguear por esta Festa de Paz, pressupunha aceitar um pacto com um tempo de sentido fraterno, que o Menino anunciava...
A viagem, agora, faz-se em tempo de uma tormentosa epidemia de indiferença. A perda de vigor dos credos humanos, a desistência de construir uma cidade justa, aferrolham as palavras de luz, e elegem senhores da mentira e do lixo que pregam o abdicar da alma na festa, na vida… No mundo de novos-ricos que se creem deuses, vence o pechisbeque supérfluo.
É difícil decifrar o porvir do Natal, assunto demasiado sério para neurónios que se aposentam de entender o ininteligível. Mas ainda me dou esta nostalgia, face à magia de uma festa em declínio de fraternidade.
Tinha razão D. Quixote quando argumentava: Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, nem utopia…é justiça!
E nós com um céu tão cheio de estrelas, como não assinalamos os trilhos de amansar a crueldade e sofrimento das pessoas, das crianças, que diariamente nos olham com olhos inquiridores e de mágoa?

11/01/2017
 

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